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Linchamentos no Brasil: crimes e justiçamento popular

O jovem imigrante congolês Moïse Kabamgabe trabalhava num quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e foi violentamente assassinado quando exigiu o pagamento de salários que lhe eram devidos. O crime gerou revolta e reacendeu as discussões sobre linchamentos no Brasil. Mais do que um caso isolado, o que por si só já seria absurdo, o ocorrido é um entre outros 12 casos de linchamento ou tentativas de linchamento que ocorreram nas últimas três semanas nas praias do Rio (segundo levantamento do jornal O Globo em matéria do dia 31/01). No inquietante livro Linchamentos: a justiça popular no Brasil, o sociólogo José de Souza Martins busca, além dos motivos próximos, as raízes profundas dessa antiga prática, verdadeiro ritual de loucura coletiva. Martins aponta que esse tipo de crime tem origens no período colonial e que Brasil está entre os países que mais lincham no mundo. Assim, entender a situação pode ser um começo para encontrar caminhos que melhorem esse quadro.


No vídeo abaixo você confere o professor José Martins explicando alguns dos principais pontos do livro. E, na sequência, leia trecho da introdução da obra.


Introdução do livro Linchamentos: A justiça popular no Brasil

A frequência dos linchamentos no Brasil pede que se conheça melhor a forma e a função do justiçamento popular, entre nós endêmico. O que esta sociedade é também se expressa e se mostra por meio delas. A compreensível tendência da Sociologia é a de interessar-se primeiramente pela investigação e pela interpretação dos fenômenos sociais de superfície, aquilo que é concebido como realidade social. Isto é, os fenômenos que, em primeira instância, são acessíveis a alguma compreensão dos próprios agentes sociais, aqueles que podem narrar e explicar o que vivenciam, ainda que narrativa e explicação viesadas pelas deformações, bloqueios, omissões e limitações naturais da consciência individual. Cabe aí ao sociólogo, a partir das evidências nessa fonte obtidas, reconstituir o real para expor as insuficiências do senso comum, chegar aos fundamentos ocultos das relações e ações sociais, desvendar a estrutura a elas subjacente e a temporalidade menos visível dos processos sociais que as preside.

O justiçamento popular se desenrola num plano complexo. Há nele evidências da força do inconsciente coletivo e do que estou chamando aqui de estruturas sociais profundas, as quais permanecem como que adormecidas sob as referências de conduta social atuais e de algum modo presentes também no comportamento individual. As estruturas sociais profundas são as estruturas fundamentais remotas que, aparentemente vencidas pelo tempo histórico, permanecem como referência oculta de nossas ações e de nossas relações sociais. São estruturas supletivas de regeneração social, que se tornam visivelmente ativas quando a sociedade é ameaçada ou entra em crise e não dispõe de outra referência, acessível, para se reconstituir, fenômeno que se expressa nos linchamentos. Nesse sentido, os linchamentos podem ser remetidos à concepção de violência fundadora, de René Girard, que de linchamentos tratou em várias de suas obras. Sendo o linchado, via de regra, o estranho ou o que, por seus atos, é socialmente estranhado, isto é, repelido e excluído, mesmo no átimo de sua execução, preenche a função de “quem vem de um outro lugar”, do “estrangeiro”, cumpre a função ritual e sacrificial do bode expiatório.

Não é, portanto, estranho que encontremos nos linchamentos de hoje em dia formas de ação muito parecidas com aquelas já presentes nos primeiros linchamentos ocorridos no Brasil, ainda na Colônia. Antes mesmo que essa palavra surgisse na América inglesa, no século XVIII, e aqui chegasse, no século XIX, na conjuntura de tensões e linchamentos da proximidade da abolição da escravatura, quando essa palavra se tornou, aqui, de uso corrente. E ainda, não só as formas, mas também os significados que presidiram as condenações da Inquisição ao longo do período colonial. Os enforcamentos, sentença comum da Justiça brasileira até 1874, como aconteceu em outros lugares, tinha estrutura de espetáculo público, o que também acontecia nos autos de fé da Inquisição. Não lhes faltava nem mesmo a decapitação dos sentenciados e a decepação das mãos junto ao patíbulo, salgamento de cabeças e mãos e seu acondicionamento em caixas de madeira levadas, por capitães do mato, em excursões a lugares remotos das províncias para escarmento dos povos, como se dizia. Verdadeiro funeral de horror. Espetáculo ainda visível nos linchamentos de hoje, no açulamento de executores, como se fazia com o carrasco de antigamente, não só homens adultos coadjuvando os mais ativos na execução, mas também mulheres e crianças. Nos linchamentos, a presença de mulheres e de crianças, acolitando e até participando das execuções, aparentemente confirma o caráter ritual que os linchadores querem dar à punição.

Linchamentos no Brasil: crimes e justiçamento popular

A força da tradição, seja na própria concepção de linchamento, seja nos rituais de que se revestem, ganha sentido nos costumes funerários da sociedade brasileira, ainda fortes nas regiões rurais. São verdadeiras sobrevivências de arqueologia simbólica e imaterial que um dia dominaram, no Brasil, nossas concepções sobre a vida e a morte e o modo como se determinavam reciprocamente. Sem levar em conta a centralidade cultural da morte nas tradições da sociedade brasileira, perde-se o conteúdo sociológico essencial da prática do linchamento, que fica reduzida a mero ato de violência e limitada a uma compreensão semijurídica. Fiz, paralelamente à pesquisa sobre os linchamentos, uma pesquisa complementar e artesanal sobre a morte e o morto e sobre as crenças relativas ao corpo. Os três ensaios dela resultantes estão contidos na segunda parte do livro. Eles esclarecem as concepções subjacentes a certas práticas associadas aos linchamentos, especialmente relativas ao inconsciente coletivo e às estruturas sociais profundas. As questões propriamente metodológicas são analisadas na terceira e última parte do livro.

Há uma demora cultural na mentalidade que permanece, ainda que impregnada de disfarces de uma atualidade que não é a do novo, mas a do persistente. A Justiça formal e oficial deixou de aplicar a pena de morte, ainda no Império, abolida por lei, mas o povo continuou a adotá-la em sua mesma forma antiga através dos linchamentos. Trágica expressão do divórcio entre o legal e o real que historicamente preside os impasses da sociedade brasileira, divórcio entre o poder e o povo, entre o Estado e a sociedade. Os linchamentos, de certo modo, são manifestações de agravamento dessa tensão constitutiva do que somos. Crescem numericamente quando aumenta a insegurança em relação à proteção que a sociedade deve receber do Estado, quando as instituições não se mostram eficazes no cumprimento de suas funções, quando há medo em relação ao que a sociedade é e ao lugar que cada um nela ocupa.

Os linchamentos expressam uma crise de desagregação social. São, nesse sentido, muito mais do que um ato a mais de violência dentre tantos e cada vez mais frequentes episódios de violência entre nós. Expressam o tumultuado empenho da sociedade em “restabelecer” a ordem onde ela foi rompida por modalidades socialmente corrosivas de conduta social. É que o intuito regenerador da ordem, que os linchamentos pretendem, fracassaram, tanto quanto a República fracassou no afã de modernizar e de ordenar, de instituir o equilíbrio de que toda sociedade carece na legítima aspiração de paz social e de garantia dos direitos da pessoa. Quanto mais se lincha, maior a violência; quanto mais incisivo o discurso em defesa dos direitos humanos, mais violados eles são. A polarização que se expressa nesses abismos pede superação, o que depende da lucidez que nos está faltando.

Os dados que recolhi e examinei nesta pesquisa evidenciam que, nos últimos 60 anos, cerca de um milhão de brasileiros já participou de, pelo menos, um ato de linchamento ou de uma tentativa de linchamento. Em face do volume de casos ainda não incorporados ao banco de dados, eu me arriscaria a dizer que esse número pode chegar a um milhão e meio de participantes disseminados por quase todo o país. Esse número de participantes mostra que a crescente frequência dessas ocorrências já pode ser o resultado de um efeito multiplicador, o que se nota em municípios e bairros em que tendo ocorrido um linchamento, com facilidade ocorre outro. O veto da censura da consciência social ao justiçamento praticado pela multidão foi aparentemente levantado e sua prática está sendo incorporada como um fato natural na vida rotineira da sociedade, a justiça da rua disputando autoridade com a justiça dos tribunais. Esse número também confirma que o linchamento é hoje um componente da realidade social e vem perdendo sua eventual caracterização como fato anômalo e excepcional.

Nos cerca de 60 anos abrangidos pelos 2.028 casos que compõem o material desta pesquisa, 2.579 pessoas foram alcançadas por linchamentos consumados e tentativas de linchamento. Nestas, apenas 1.150 (44,6%) foram salvas, em mais de 90% dos casos pela polícia. Outras 1.221 (47,3%) foram de fato capturadas pela turba e alcançadas fisicamente nas agressões – feridas ou mortas –, espancadas, atacadas a pauladas, pedradas, pontapés e socos, nessa ordem e nessa progressão, até os casos extremos de extração dos olhos, castração, extirpação das orelhas e cremação da vítima ainda viva. Desse grupo, 64% (782) foram mortas (30,3% do total de vítimas) e 36% (439) foram feridas (17% do total de vítimas), salvando-se estas graças à chegada da polícia, que interrompeu o processo de sua execução. Ainda no conjunto dos linchamentos e tentativas, 8,1% das vítimas conseguiram escapar por seus próprios meios.

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