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Justiça Espacial e o Direito à Cidade

O livro que ora apresentamos é o terceiro volume da Coleção Metageografia¹ organizada pelo Gesp/FFLCH/USP², grupo que congrega diversos pesquisadores em torno do objetivo de desvendar os conteúdos da urbanização contemporânea, na perspectiva da construção de uma “geografia urbana crítica radical”, propondo: a) o debate teórico-conceitual relacionado à construção de uma teoria urbana crítica; b) a compreensão da urbanização contemporânea, explicitando a desigualdade e as contradições que fundamentam a produção do urbano a partir da metrópole e no horizonte da construção da sociedade urbana. Essa perspectiva crítica dá centralidade à dimensão espacial da problemática urbana, apoiando-se na hipótese segundo a qual a reprodução do espaço urbano aprofunda a contradição entre o processo de produção social do espaço e sua apropriação privada, como o desencontro entre sujeito e obra, atualizando a alienação no mundo moderno. Nessa perspectiva, a “metageografia” seria o caminho capaz de revelar as contradições constitutivas do processo desigual da produção contemporânea do espaço urbano que, ao potencializar o “negativo” desse processo, propõe um caminho profícuo para elucidar os conteúdos da crise urbana como crise social. Essa orientação torna possível pensar a elaboração de um projeto de sociedade compromissado com a criação de um “outro espaço urbano”, como destino do homem. Desse modo, o “direito à cidade”, como conceito, não poderia ser separado da concepção da produção social do espaço, na medida em que a análise dessa produção é capaz de revelar as dinâmicas de reprodução contraditória do capitalismo.

Essa hipótese, todavia, se desenvolve a partir da tese segundo a qual a produção do espaço, especificamente o urbano, é fundamental para a acumulação do capital como possibilidade renovada de realização da reprodução social. Hoje, em suas profundas metamorfoses, o espaço urbano aponta que a realização do capitalismo, como um processo de acumulação, encontra seus limites gerando imensos conflitos. Estes aparecem, de forma mais aguda, na metrópole, revelando os limites da reprodução ampliada e, com isso, apontando as contradições da produção do espaço. Isso porque, no momento atual, a mundialização econômica trouxe a concentração sem limites da riqueza que acompanha o processo de privatização do mundo, o que aprofunda a desigualdade exigindo a abolição das condições de exploração e opressão que a acompanham.

No plano da metrópole, a segregação socioespacial aprofunda-se como decorrência da concentração da riqueza, oriunda das novas formas de expropriação, como um processo espacial por excelência. Isso porque, como já desenvolvidos nos outros livros desta Coleção, as relações sociais objetivam-se produzindo formas nas quais a sociedade apropria-se dos lugares onde a vida transcorre em sua totalidade. Nessa direção, a produção do espaço é imanente à produção do humano. No mundo moderno, entretanto, o ato de separação entre obra (espaço) e produtor (sociedade) incide, justamente, na regulação e no impedimento do uso, no recuo da apropriação (e da cidadania) que, por sua vez, produz uma representação que reforça a “naturalização” da expropriação.

Assim, a importância do espaço na acumulação capitalista vem acompanhada do obscurecimento dos processos produtores do espaço, o que impede de entender que, para superar as contradições geradas ao longo da história da acumulação do capital, principalmente entre as forças produtivas e a reprodução das relações de produção, os capitalistas lançaram-se sobre o espaço, ocupando-o e transformando-o em um objeto estratégico (tese desenvolvida no segundo volume, A cidade como negócio). Logo, a produção do espaço desempenha uma função ativa nas múltiplas formas de expropriação, seja no ato de escamoteá-las através das representações, seja por meio da ação direita de separação da sociedade no espaço. Todavia, é impossível evitar o conflito que nasce da segregação socioespacial, como condição e meio da reprodução social. A crise social manifesta-se, em grande parte, como crise urbana, e as resistências ganham visibilidade nos espaços públicos. As ruas das grandes cidades, e particularmente das metrópoles, têm dado visibilidade à alienação que sustenta a reprodução do urbano.

O conflito configura-se como luta pela cidade, já que está orientado pelas reiteradas resistências às ações de expropriação realizadas no plano da vida cotidiana. O mundo da mercadoria ganha importância nunca vista antes, mas as resistências ao seu domínio também se fortalecem. A resistência urbana é a face da recusa dessa lógica, iluminando a dialética. A resistência é a recusa, o questionamento da privação decorrente do desenvolvimento capitalista apoiado no crescimento econômico, uma ação que denuncia uma prática urbana normatizada, estruturada pelo mundo da mercadoria. Aparece no horizonte iluminando a necessidade de se pensar no futuro. Desse modo, o debate teórico, o discurso político e o cotidiano (nos quais se localizam as contradições e se realizam as lutas) iluminam o papel do espaço e sua potência no desvendamento das contradições que assediam a vida urbana, apontando a existência de uma crise urbana que se origina na desigualdade. Essa conjuntura coloca como questões a justiça espacial e o direito à cidade.

É possível, nos dias atuais, construir uma leitura que ultrapasse a esfera dos bens necessários à realização da vida para abrir-se à escala humana do desejo? Seriam as ações dos movimentos sociais reveladoras da resistência às formas da expropriação vividas? A possibilidade de superação dessa situação estaria no fundamento dos movimentos sociais e no questionamento que surge nas ruas da metrópole? Estes sinalizam que tipo de consciência? Trariam estas o sentido do possível, e quem sabe da utopia, como aquela de um outro mundo possível?

Este livro, se não dá conta de todas as faces da alienação urbana, traz argumentos para pensá-las. Repousa no debate sobre o “direito à cidade” a partir da fundamentação teórica construída por Henri Lefebvre, desafiando os pesquisadores. Certamente, a centralidade da obra de Lefebvre no debate atual sobre a crise urbana em sua dimensão socioespacial é inquestionável, mas a obra tem dado margem a dois tipos fundamentais de interpretação. De um lado, o direito à cidade seria a base de construção das políticas públicas capazes de diminuir a desigualdade, sob a batuta do Estado. Também foi desdobrado nos termos do debate sobre a justiça espacial, desenvolvida, particularmente, por Soja. De outro lado, o direito à cidade pode ser examinado à luz do projeto utópico de construção de uma nova sociedade (urbana) desdobrada de seu projeto possível-impossível, como o negativo do mundo urbano. Esse caminho exige a compreensão sobre a dinâmica contraditória do processo de produção do espaço urbano.

Este livro, ao focar as lutas por “justiça” e por “direitos”, debate, num primeiro momento, os conteúdos teóricos do “direito à cidade” em sua radicalidade tal qual posta pelo projeto possível-impossível de Henri Lefebvre e que tem orientado a construção da metageografia (Carlos, Ribeiro, Padua, Alves e Alvarez); num segundo momento traz as formas e os conteúdos teórico-práticos da compreensão da justiça/injustiça nas reflexões de Ramires e Gervais-Lambony. Ambos têm pontos de partida semelhantes, apontando não apenas a atualidade do livro O direito à cidade publicado em 1968, mas a obra do autor (ainda pouco conhecida), o que revela sua potência na compreensão da crise urbana e na construção dos caminhos possíveis de sua superação. Assim, se no exterior, particularmente na França, o grupo liderado por Gervais-Lambony, desenvolve a ideia de que a crise urbana aponta a dialética justiça/injustiça, caminhando na construção de uma justiça espacial, numa outra direção os brasileiros (membros do Gesp) centram sua atenção no “direito à cidade” a partir da constatação do urbano vivido como privação, enfocando o “direito à cidade” como o negativo da metrópole neoliberal. O argumento central do debate desse grupo (que localiza as lutas na produção do espaço urbano realizando-se no plano do cotidiano, capaz de revelar as dinâmicas contraditórias na base da reprodução do capitalismo) tem como fundamento a obra de Karl Marx e de Henri Lefebvre.

Convém lembrar ainda que, no Brasil, o direito à cidade vem acompanhado da preocupação com a construção de políticas públicas. Em muitos casos se trata de modelizar o pensamento lefebvriano de tornar lógico um pensamento que é dialético. A obra de Lefebvre tem, indiscutivelmente, uma positividade no mundo moderno, permitindo o questionamento da propriedade privada como antinonímia de direitos entre possuidores e destituídos dentro de uma mesma sociedade. Nessa direção, ao iluminar a barbárie encoberta da existência da propriedade dominando e regulando as relações sociais, permite construir políticas de restrição. Com isso ilumina a desigualdade, obrigando a academia a debatê-la e os órgãos públicos a darem respostas. Afinal as lutas ganham visibilidade na mídia na medida em que ganham visibilidade no espaço público.

O livro mostra que é possível pensar que a privação do urbano está no fundamento das lutas pelo espaço na cidade, questionando a lógica do crescimento e a racionalidade deste modo de produção – como reprodução de relações sociais dominadas. Os movimentos sociais lutam pelo espaço da realização da vida, bem como por um espaço democrático onde possam exprimir-se e decidir sobre o uso dos bens comuns produzidos socialmente, exigindo a abolição de suas condições de exploração e opressão. Aqui encontram-se as resistências. Assim, as manifestações de rua e dos movimentos sociais trazem, como exigência, a superação do entendimento da cidade enquanto quadro físico, ao mesmo tempo em que ultrapassam a esfera “do ter” e da busca desenfreada pela qualidade de vida – portanto, sinalizando a necessidade de superação do mundo da mercadoria e da sociedade de consumo. Também sinalizam a insuficiência de se pensar a crise urbana como crise de moradia e insuficiência de serviços e infraestrutura. A crise criada pelas contradições se localiza no debate sobre a moradia, que se justifica pela centralidade da fixação do indivíduo no plano do uso/habitar como o centro do mundo e lugar a partir do qual cria laços com os outros lugares e com o outro. Mas os capítulos que compõem esta obra ampliam esse debate.

Este livro também é produto do diálogo acadêmico entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre a cidade e o urbano a partir do reconhecimento de que as lutas pelo espaço se aprofundaram nos últimos anos e precisam ser compreendidas em seus fundamentos e em diferentes escalas temporais e espaciais.


NOTAS

  1. Os capítulos que compõem este livro foram apresentados no I Seminário Internacional Justiça Espacial e o Direito à Cidade, realizado no Departamento de Geografia da FFLCH/USP, organizado pelo Gesp, e coordenado por Ana Fani Alessandri Carlos e Gloria Anunciação Alves, em dezembro de 2015.
  2. O primeiro volume, Crise urbana, publicado em português e em inglês (e-book), e o segundo volume, A cidade como negócio, foram publicados pela Contexto. Sobre o Gesp, coordenado por Ana Fani Alessandri Carlos, veja http://gesp.fflch.usp.br.