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História dos negros e cultura brasileira | José Rivair Macedo

Os versos da epígrafe deste livro fazem parte da letra de uma canção que serviu de enredo da Escola de Samba Garotos da Orgia no carnaval de Porto Alegre em 1991. A autoria é de Eugênio Alencar, respeitado detentor das tradições africanas, sambista admirado nos ambientes da cultura popular e da cultura negra gaúcha, onde é conhecido como Mestre Paraquedas.
Na íntegra, diz:

Mali, o Império Mandinga, Djéli, filho de Pemba Kanda,
do clã do Leão Dourado, era sua primeira caçada, para receber o apito de Sinbon, com a ajuda do grande Deus da caça Sanê Nikodolon.
E Keita parte para Niani, junto ao Rei Mamadou Abdoul, e quase morre atacado por um búfalo furioso, mas a lança certeira do jovem Djéli o salvou.
Como gratidão oferece riquezas, um griot, e sua filha, a princesa Mamadiê.
Mas Dankaran, o feiticeiro expulso, irado, lança sua maldição:
que enquanto não nascesse o filho da princesa nenhuma outra criança ia nascer.
Nasce um novo dia, é primavera, é nova era que chegou, nasceu Kamadian, o Leão-Menino, presente que a Deusa Mokoy fertilizou. – (Alencar, 1991)

História dos negros e cultura brasileira | José Rivair Macedo

Desde a primeira vez que a ouvi, admiro a beleza e força poética da canção. Ela encontra inspiração na epopeia de Sundjata, o governante mandinga da linhagem dos Keita que no século XIII teria criado as bases do Império do Mali (Niane, 1982). Nela estão presentes símbolos e personagens valorizados no imaginário africano tradicional: o guerreiro, o caçador e o universo da caça; as divindades, o feiticeiro, a princesa; e o griot, o contador de histórias (Cissé, 1994). Também me interessa saber por que meios e em quais circunstâncias tais temas da cultura histórica da África Ocidental circularam até chegar deste lado do Atlântico e como foram preservados pelos detentores das tradições negras. Encontra-se aí uma prova da extraordinária capacidade de preservação na memória popular de mitos, lendas e episódios ausentes dos livros didáticos de História produzidos no Brasil, em que a África tende a ser retratada quase sempre pelo viés da escravidão.

A letra do samba-enredo composto por Mestre Paraquedas convida professores(as) e pesquisadores(as) africanistas a ajustar o foco de seu olhar para as antigas sociedades africanas. Propõe uma imagem alternativa do passado, em parte sonhada, em parte imaginária, porém altiva e afrocentrada, diferente daquela encontrada nas salas de aula, nos estudos e interpretações acadêmicas convencionais, em que de modo geral as narrativas desenvolvem a ação de traficantes de escravos, aventureiros e exploradores, missionários e agentes coloniais, com os(as) africanos(as) reduzidos(as) à condição de vítimas quase sempre passivas, silenciosas, sem protagonismo, sem agência criativa. Como tantas outras criações promovidas por artistas populares, cineastas e escritores(as) originários(as) do continente ou da diáspora negra, o samba-enredo aqui evidenciado dialoga diretamente com a africanidade.

Continua a ser um grande desafio para o campo disciplinar da história, feito em moldes eurocêntricos, reconhecer a especificidade das sociedades africanas, detectar os elementos que integram seus processos históricos, distinguir conceitos, categorias mentais e traços distintivos específicos de seus povos; determinar as continuidades e rupturas, as conexões, interações e trocas em âmbito intracontinental e extracontinental; analisar o funcionamento de suas instituições e identificar suas contribuições para a história mundial. Isso permitiria ir além do lugar-comum que condiciona o continente ao escravismo e ao colonialismo; como se a única função da África no mundo fosse a de constituir um repositório humano subalternizado, uma área periférica que por si só estaria condenada à dependência, ao imobilismo, ao subdesenvolvimento.

Em 2013, a convite da Editora Contexto, escrevi História da África, obra publicada na coleção História na Universidade. Sua finalidade, eminentemente didática, era apresentar, em grandes linhas, uma narrativa articulada em perspectiva panorâmica e abrangente da diversidade ambiental, cultural, política e social do continente na longuíssima duração de sua história. Aquela visão introdutória respeitava as diferenças e peculiaridades sociais, culturais e históricas decorrentes da grande variedade de grupos étnico-linguísticos, regiões, civilizações e formações estatais englobantes.

Este livro apresenta outra proposta, outro formato, outra estratégia de abordagem. Baseia-se em longa pesquisa documental e bibliográfica realizada entre os anos 2016-2020 com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi elaborado a partir de escolhas teóricas, conceituais e metodológicas que têm por finalidade a valorização de perspectivas endógenas na interpretação de fatos, contextos e estruturas sociais do passado do continente. Opta pelo estudo de sociedades em períodos históricos anteriores ao colonialismo, com foco em fenômenos coletivos, apoiando-se em dados de fontes escritas, de evidências da cultura material recuperadas pela Arqueologia e de dados preservados pelas tradições orais. Mas a atenção é dirigida a apenas uma parte do continente, aquela que grandes nomes da historiografia africanista africana, como Cheikh Anta Diop, Joseph Ki-Zerbo e Elikia M’Bokolo chamaram de “África negra”.

O contexto espacial e temporal é o mesmo que inspirou a letra do samba-enredo de Mestre Paraquedas. Diz respeito à região do Sahel, no extremo-sul do Deserto do Saara, e à bacia do Níger, situada entre o ambiente da savana e da floresta tropical, no período cronológico dos séculos XIII-XVI, quando, na Europa, vivia-se o período histórico da Idade Média; espaço designado nas fontes árabes pela expressão “Bilad al-Sudan” e nos textos europeus dos séculos XVIII-XIX como “Negroland”, isto é, a “Terra dos negros”. As organizações sociais eram então controladas por povos falantes da língua mandinga e da língua songai; sua área de influência políticoeconômica corresponde, no presente, aos territórios do Mali, Níger, Guiné-Conacri e, em menor proporção, Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Burkina Faso, Gana, Costa do Marfim e Mauritânia. Foram aqueles povos os construtores das poderosas formações estatais designadas nos livros de História ocidentais pelos termos “Império do Mali” e “Império Songai”, denominações que, conforme será demonstrado neste livro, não expressam adequadamente as realidades históricas a que se referem.

Com este Antigas sociedades da África negra espero dar a conhecer ao público brasileiro resultados inéditos de pesquisa e fortalecer a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) tal qual preconiza a Lei Federal nº 10.639/2003 – que deu origem ao artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) ao tornar obrigatório o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana. Em todos os sentidos, a ampliação de nossa consciência histórica acerca da África e dos(as) africanos(as) contribuirá para uma reconciliação com o nosso passado e com nossa identidade social, em que africanos e afrodescendentes desempenharam papel fundamental. Algo que os(as) detentores(as) das tradições negras têm consciência há muito tempo. A eles(as), meu profundo respeito e reconhecimento!


José Rivair Macedo é licenciado em História pela Universidade de Mogi das Cruzes e doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP); realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Lisboa. Atua como pesquisador do CNPq desde 1995, é professor titular no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e também docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade, onde leciona História da África. É sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, coordena a Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do ILEA-UFRGS e participa do NEAB-UFRGS. Pela Contexto, é autor do livro História da África e Antigas sociedades da África negra e coautor de História na sala de aula, Faces do fanatismo, História das guerras, História da paz e O Brasil no Contexto 1987-2017. Junto com Thuila Ferreira, coordenou o projeto Biografias de mulheres africanas: www.ufrgs.br/africanas.

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