Os versos da epígrafe deste livro fazem parte da letra de uma canção que serviu de enredo da Escola de Samba Garotos da Orgia no carnaval de Porto Alegre em 1991. A autoria é de Eugênio Alencar, respeitado detentor das tradições africanas, sambista admirado nos ambientes da cultura popular e da cultura negra gaúcha, onde é conhecido como Mestre Paraquedas.
Na íntegra, diz:
Mali, o Império Mandinga, Djéli, filho de Pemba Kanda,
do clã do Leão Dourado, era sua primeira caçada, para receber o apito de Sinbon, com a ajuda do grande Deus da caça Sanê Nikodolon.
E Keita parte para Niani, junto ao Rei Mamadou Abdoul, e quase morre atacado por um búfalo furioso, mas a lança certeira do jovem Djéli o salvou.
Como gratidão oferece riquezas, um griot, e sua filha, a princesa Mamadiê.
Mas Dankaran, o feiticeiro expulso, irado, lança sua maldição:
que enquanto não nascesse o filho da princesa nenhuma outra criança ia nascer.
Nasce um novo dia, é primavera, é nova era que chegou, nasceu Kamadian, o Leão-Menino, presente que a Deusa Mokoy fertilizou. – (Alencar, 1991)
Desde a primeira vez que a ouvi, admiro a beleza e força poética da canção. Ela encontra inspiração na epopeia de Sundjata, o governante mandinga da linhagem dos Keita que no século XIII teria criado as bases do Império do Mali (Niane, 1982). Nela estão presentes símbolos e personagens valorizados no imaginário africano tradicional: o guerreiro, o caçador e o universo da caça; as divindades, o feiticeiro, a princesa; e o griot, o contador de histórias (Cissé, 1994). Também me interessa saber por que meios e em quais circunstâncias tais temas da cultura histórica da África Ocidental circularam até chegar deste lado do Atlântico e como foram preservados pelos detentores das tradições negras. Encontra-se aí uma prova da extraordinária capacidade de preservação na memória popular de mitos, lendas e episódios ausentes dos livros didáticos de História produzidos no Brasil, em que a África tende a ser retratada quase sempre pelo viés da escravidão.
A letra do samba-enredo composto por Mestre Paraquedas convida professores(as) e pesquisadores(as) africanistas a ajustar o foco de seu olhar para as antigas sociedades africanas. Propõe uma imagem alternativa do passado, em parte sonhada, em parte imaginária, porém altiva e afrocentrada, diferente daquela encontrada nas salas de aula, nos estudos e interpretações acadêmicas convencionais, em que de modo geral as narrativas desenvolvem a ação de traficantes de escravos, aventureiros e exploradores, missionários e agentes coloniais, com os(as) africanos(as) reduzidos(as) à condição de vítimas quase sempre passivas, silenciosas, sem protagonismo, sem agência criativa. Como tantas outras criações promovidas por artistas populares, cineastas e escritores(as) originários(as) do continente ou da diáspora negra, o samba-enredo aqui evidenciado dialoga diretamente com a africanidade.
Continua a ser um grande desafio para o campo disciplinar da história, feito em moldes eurocêntricos, reconhecer a especificidade das sociedades africanas, detectar os elementos que integram seus processos históricos, distinguir conceitos, categorias mentais e traços distintivos específicos de seus povos; determinar as continuidades e rupturas, as conexões, interações e trocas em âmbito intracontinental e extracontinental; analisar o funcionamento de suas instituições e identificar suas contribuições para a história mundial. Isso permitiria ir além do lugar-comum que condiciona o continente ao escravismo e ao colonialismo; como se a única função da África no mundo fosse a de constituir um repositório humano subalternizado, uma área periférica que por si só estaria condenada à dependência, ao imobilismo, ao subdesenvolvimento.
Em 2013, a convite da Editora Contexto, escrevi História da África, obra publicada na coleção História na Universidade. Sua finalidade, eminentemente didática, era apresentar, em grandes linhas, uma narrativa articulada em perspectiva panorâmica e abrangente da diversidade ambiental, cultural, política e social do continente na longuíssima duração de sua história. Aquela visão introdutória respeitava as diferenças e peculiaridades sociais, culturais e históricas decorrentes da grande variedade de grupos étnico-linguísticos, regiões, civilizações e formações estatais englobantes.
Este livro apresenta outra proposta, outro formato, outra estratégia de abordagem. Baseia-se em longa pesquisa documental e bibliográfica realizada entre os anos 2016-2020 com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi elaborado a partir de escolhas teóricas, conceituais e metodológicas que têm por finalidade a valorização de perspectivas endógenas na interpretação de fatos, contextos e estruturas sociais do passado do continente. Opta pelo estudo de sociedades em períodos históricos anteriores ao colonialismo, com foco em fenômenos coletivos, apoiando-se em dados de fontes escritas, de evidências da cultura material recuperadas pela Arqueologia e de dados preservados pelas tradições orais. Mas a atenção é dirigida a apenas uma parte do continente, aquela que grandes nomes da historiografia africanista africana, como Cheikh Anta Diop, Joseph Ki-Zerbo e Elikia M’Bokolo chamaram de “África negra”.
O contexto espacial e temporal é o mesmo que inspirou a letra do samba-enredo de Mestre Paraquedas. Diz respeito à região do Sahel, no extremo-sul do Deserto do Saara, e à bacia do Níger, situada entre o ambiente da savana e da floresta tropical, no período cronológico dos séculos XIII-XVI, quando, na Europa, vivia-se o período histórico da Idade Média; espaço designado nas fontes árabes pela expressão “Bilad al-Sudan” e nos textos europeus dos séculos XVIII-XIX como “Negroland”, isto é, a “Terra dos negros”. As organizações sociais eram então controladas por povos falantes da língua mandinga e da língua songai; sua área de influência políticoeconômica corresponde, no presente, aos territórios do Mali, Níger, Guiné-Conacri e, em menor proporção, Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Burkina Faso, Gana, Costa do Marfim e Mauritânia. Foram aqueles povos os construtores das poderosas formações estatais designadas nos livros de História ocidentais pelos termos “Império do Mali” e “Império Songai”, denominações que, conforme será demonstrado neste livro, não expressam adequadamente as realidades históricas a que se referem.
Com este Antigas sociedades da África negra espero dar a conhecer ao público brasileiro resultados inéditos de pesquisa e fortalecer a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) tal qual preconiza a Lei Federal nº 10.639/2003 – que deu origem ao artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) ao tornar obrigatório o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana. Em todos os sentidos, a ampliação de nossa consciência histórica acerca da África e dos(as) africanos(as) contribuirá para uma reconciliação com o nosso passado e com nossa identidade social, em que africanos e afrodescendentes desempenharam papel fundamental. Algo que os(as) detentores(as) das tradições negras têm consciência há muito tempo. A eles(as), meu profundo respeito e reconhecimento!
José Rivair Macedo é licenciado em História pela Universidade de Mogi das Cruzes e doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP); realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Lisboa. Atua como pesquisador do CNPq desde 1995, é professor titular no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e também docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade, onde leciona História da África. É sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, coordena a Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do ILEA-UFRGS e participa do NEAB-UFRGS. Pela Contexto, é autor do livro História da África e Antigas sociedades da África negra e coautor de História na sala de aula, Faces do fanatismo, História das guerras, História da paz e O Brasil no Contexto 1987-2017. Junto com Thuila Ferreira, coordenou o projeto Biografias de mulheres africanas: www.ufrgs.br/africanas.