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Antigas Sociedades da África Negra | Lançamento

Antigas Sociedades da África Negra | Lançamento

Ibn Battuta, os hipopótamos e a “Idade Média” na África.
Ao retornar da longa viagem feita às terras situadas além do Grande Deserto, nos domínios dos “sultões” do Bilad al-Sudan, a “Terra dos negros”, o viajante marroquino conhecido como Ibn Battuta descreve em seu relato de viagens, o Tuhfat al-Zuzzar fi gara’ib al amsar wa-aga’ib al-asfar (Presente precioso oferecido aos observadores sobre coisas curiosas e maravilhas vistas em países e em viagens) um entre tantos outros episódios curiosos. Era o dia 22 de fevereiro de 1353, segundo o calendário cristão. Da cidade sede dos governantes, que ele nomeia Malli, partiu acompanhado do mercador Abu Bakr ibn Yakub. Ambos iam em lombo de camelos na direção da cidade de Mima quando chegaram a um grande canal que saía do rio “Nilo” – nome pelo qual, como era costume entre os árabes, se designava o rio Níger –, onde se fazia a travessia em pirogas.

De acordo com o relato, o local durante o dia era infestado de moscas. Por isso os dois viajantes decidiram realizar a travessia de noite. Quando estava na embarcação, Ibn Battuta avistou estranhos animais que, num primeiro momento, pensou serem elefantes, mas logo mudou de ideia ao vê-los mergulhar nas águas. Admirado, perguntou ao companheiro que estranhos seres eram aqueles, ao que teve a seguinte resposta: “são cavalos do rio que saíram para pastar em terra”. Como jamais os tivesse visto, e supondo que os seus ouvintes e/ou leitores também não os conhecessem, diz serem estes animais maiores do que os equinos, com crina, rabo e cabeça semelhantes aos dos cavalos, mas com patas semelhantes às dos elefantes. Afirma que eles se moviam por debaixo da água, levantando de vez em quando a cabeça até a superfície, quando soltavam urros. Os condutores das embarcações desviavam-se para a margem com medo deles, de modo a evitar o perigo de um ataque (Cuoq, 1985: 312-313).

À primeira vista, a cena não contém maior significado ou importância para a compreensão dos acontecimentos, estruturas sociais e políticas, hábitos e costumes dos povos sudaneses da área subsaariana. Talvez por isso ela passou despercebida dos estudiosos que se dedicaram a analisar e interpretar a narrativa de Ibn Battuta como fonte histórica. Sua probabilidade como testemunho ocular, aliás, depende que se aceite ter ele de fato realizado a viagem que descreve, algo colocado em dúvida por alguns especialistas em História Africana. Ao estudar as lógicas internas do relato e a “geografia mental” dos itinerários e lugares visitados pelo viajante marroquino ao extremo sul do Saara, François-Xavier Fauvelle-Aymar e Bertrand Hirsch (2003) identificam na trama narrativa tópicos retóricos que guardam grande similaridade com aqueles presentes na obra do cronista sírio radicado no Cairo, al-Umari, levantando dúvida sobre a originalidade das informações contidas no relato do Tuhfat al-Zuzzar.

Neste livro, por razões que serão apontadas adiante, admite-se que o conteúdo do relato de Ibn Battuta provenha do testemunho de uma experiência de contato cultural genuína, mesmo que a redação do texto tenha sido feita alguns anos depois da viagem, em 1356, pelo poeta Ibn Djuzzay. Ainda que influenciado por diversas circunstâncias entre o visto, o vivido, o lembrado, o narrado e o transmitido em uma expressiva tradição manuscrita, o testemunho de Ibn Battuta mostra-se precioso por conter o relato de um contato direto com a área subsaariana, uma parte do mundo sobre a qual há pouquíssimas fontes históricas diretas escritas antes do século XVI.

Não quer dizer, todavia, que a narrativa do viajante marroquino deva ser apreendida sem um exame crítico, e que tudo o que aparece nela corresponda às realidades históricas das sociedades sudanesas anteriores aos contatos com os europeus, que a historiografia africanista europeia tem classificado como pertencentes ao período “medieval”. A cena em que Ibn Battuta descreve os hipopótamos do rio Níger é aqui mencionada pelo quanto ela revela de uma perspectiva etnocêntrica. Para dar a conhecer ao público a quem a narrativa seria destinada o aspecto de um animal da savana, nunca visto nas sociedades magrebinas e mediterrânicas, o viajante se valeu de um perigoso jogo de associação mental: ao representar os paquidermes como sendo portadores de “cabeça de cavalo” e “patas de elefante”, a imagem resultante não representou adequadamente o corpo descrito, mas produziu uma imagem desfigurada em que o animal assume o aspecto híbrido de um monstro.

Saiba mais sobre a obra, clicando aqui


José Rivair Macedo é licenciado em História pela Universidade de Mogi das Cruzes e doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP); realizou estágio de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Lisboa. Atua como pesquisador do CNPq desde 1995, é professor titular no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e também docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade, onde leciona História da África. É sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, coordena a Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do ILEA-UFRGS e participa do NEAB-UFRGS. Pela Contexto, é autor do livro História da África e Antigas sociedades da África negra e coautor de História na sala de aula, Faces do fanatismo, História das guerras, História da paz e O Brasil no Contexto 1987-2017. Junto com Thuila Ferreira, coordenou o projeto Biografias de mulheres africanas: www.ufrgs.br/africanas.