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Formação da nação brasileira | Lançamento

Este livro trata de um tema do passado que, por muitos motivos, é também do presente: as origens e a consolidação daquilo que hoje chamamos de nação brasileira, assim como muitas das variações e disputas em torno dela que, nos últimos duzentos anos, uniram e dividiram brasileiros e brasileiras.

A história de uma nação é sempre um manancial inesgotável de bons pretextos para um livro de História. De preferência, um livro que cative seu leitor sem deixar de respeitar sua capacidade de se transformar e de passar a pensar de uma maneira um pouco diferente da habitual.

No Brasil, o interesse pela história, embora menor do que muita gente desejaria, não é insignificante. Esse interesse está esparramado por muitos cantos de nossa sociedade, materializando-se em suportes desde os mais convencionais, como livros e museus, até outros relativamente novos, como foros de encontro e debate em redes sociais. Independentemente da natureza de cada um deles, o interesse pela história só pode gerar genuíno conhecimento se estiver apoiado em materiais que conciliem a fruição sensível do passado com os rigores do método científico. O prazer do conhecimento tem seu necessário complemento no compromisso com o estudo. É nesta perspectiva que este livro foi escrito. Esperamos que ele contribua para um melhor entendimento do que foi, é e – por que não? – pode vir a ser a nação brasileira.

Por que o Brasil não se divide?
O atual território do Brasil se estende por aproximadamente 8,5 milhões de quilômetros quadrados. É o quinto maior do mundo, ficando atrás apenas de Rússia, Canadá, Estados Unidos e China. Sua enormidade física corresponde a diversos perfis de relevo, geologia, clima e biodiversidade. Nele há quatro fuso-horários, e um deslocamento aéreo ininterrupto entre seus extremos norte e sul levaria mais de quatro horas.

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O Brasil também possui uma enorme diversidade humana. O censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2022 indica uma população de 203 milhões e 100 mil habitantes. Dentre eles, encontram-se pessoas de caras, cores, tamanhos, sotaques e culturas de todo tipo, inclusive imigrantes internos e externos, distribuídas em 26 estados (mais o Distrito Federal), concentradas em 5.570 municípios ou esparramadas em zonas rurais. Do ponto de vista de sua gente, o Brasil é o sétimo país mais populoso do planeta, e sem dúvida um dos mais plurais.

No entanto, essa pluralidade não é, como bem sabemos, sinônimo de perfeita harmonia. Muito pelo contrário.

O Brasil tem uma história violenta. Muito violenta. Escrevendo no já longínquo ano de 1974, o historiador Hernâni Donato nela identificou mais de 100 “conflitos que provocaram batalha”. Ao longo de sua existência como país independente, o Brasil participou diretamente de cinco guerras internacionais, de numerosas operações militares no exterior, e conheceu sangrentas guerras internas, iniciadas com as guerras de Independência (1822-1824) e continuadas em ocasiões como a Confederação do Equador (1824) e a Praieira (1848-1849), em Pernambuco; as genericamente chamadas Revoltas Regenciais, em várias províncias; a Revolução Federalista (1893-1895), no Rio Grande do Sul; a Guerra de Canudos (1896-1897), no sertão da Bahia; a Revolta da Vacina (1904), no Rio de Janeiro; e a Revolução Constitucionalista (1932), em São Paulo. Além de muitas revoltas de escravos e de militares, motins políticos e golpes de Estado.

Houve numerosos outros episódios de violência política e social aos quais os adjetivos “guerra”, “revolta”, “revolução” ou “motim” não caberiam bem, mas que também mataram muita gente. Por exemplo, a chacina de 255 pessoas no brigue Palhaço, no Pará (1823); as campanhas do cangaço no atual Nordeste (1870-1940); o extermínio de líderes religiosos na Bahia e no Ceará entre 1936 e 1938; o assassinato de centenas de militantes políticos durante nossas ditaduras (só entre 1964 e 1985 foram 434 mortos); a chacina de 111 detentos no Carandiru, em São Paulo (1992); o assassinato, também por forças policiais, de 8 crianças em frente à Igreja da Candelária, e de 21 moradores de Vigário Geral, no Rio de Janeiro (1993), e de 19 militantes pelo direito à terra em Eldorado de Carajás, no Pará (1996), além de muitos outros por motivos ambientais. Cabe lembrar, igualmente, os conflitos de policiais com milicianos, traficantes de drogas e outros contraventores, bem como entre facções rivais em presídios e penitenciárias, tão comuns e tão letais em muitas cidades do Brasil nos dias de hoje.

A violência no Brasil é histórica e atual. De acordo com o Global Peace Index 2022, que ranqueou 163 países segundo índices de paz interna e externa (sendo 1 o mais pacífico), o Brasil ocupava o posto de número 130, muito abaixo de países como Indonésia, Zâmbia, Bangladesh ou El Salvador, e só um pouco acima de outros como Eritreia, Índia e México. Não é de se espantar: no Brasil de 2022 foram registrados 41 mil assassinatos, número somente 1% menor do que no ano anterior. Segundo a ONG mexicana Consejo Ciudadano para la Seguridad Publica y la Justicia Penal, 10 das 50 cidades mais violentas do mundo são brasileiras.

Esse cenário de violência endêmica vai ao encontro do perfil socioeconômico de nosso país, que continua a ser um dos mais desiguais de todo o mundo. Em 2021, os 10% dos brasileiros mais ricos ganhavam cerca de 59% da renda total do país, e o 1% mais rico concentrava cerca de 50% da renda patrimonial. Potencializada por essa desigualdade que cria distâncias muitas vezes instransponíveis entre ricos e pobres, a violência no Brasil é generalizada, mas altamente seletiva: atinge principalmente pessoas pobres, e muito mais negros e pardos do que brancos. Homens são os mais assassinados, mas as taxas de feminicídio e de crimes contra pessoas LGBTQIA+ são elevadas, assim como de violência contra crianças e pessoas vulneráveis em geral. A exclusão política e econômica de populações indígenas e delas descendentes é notória, o racismo está em toda parte, enquanto diferenças religiosas, ideológicas e até mesmo esportivas são pretexto diário para agressões e assassinatos. Entre 2019 e 2022, o consumo privado legal e ilegal de armas disparou.

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O mito do Brasil como um país pacífico começou a ser inventado há mais de dois séculos, e foi gerando derivações convergentes: uma Independência supostamente sem guerras, uma escravidão humanitária, a inexistência de guerras civis, ditaduras brandas e pouco violentas, exército e polícias pacificadoras. E por mais que as evidências contrárias a esse mito sigam se avolumando, ele continua de pé. A crença de que o brasileiro é um indivíduo por natureza afeito à conciliação e ao entendimento é enganosa. Mas ela oferece à nossa sociedade uma espécie de antídoto a algumas de suas mazelas mais doloridas. Uma confortável e prazerosa ilusão.

A toda essa violência que caracteriza o Brasil, podemos acrescentar uma percepção bastante comum de que somos um povo com pouca consciência cívica e de frouxos laços comunitários. Segundo essa visão, os brasileiros não teriam “patriotismo” ou “nacionalismo” (esclarecerei esses termos mais adiante). Seriam um povo desprovido de memória, ignorante, desinteressado, e que pouco se importaria com sua história. Muita gente considera a história do Brasil inferior em valores, personagens e acontecimentos quando comparada à de outros países. Há quem diga até mesmo que no Brasil não houve uma verdadeira independência, e que o país continuaria até hoje a ser uma colônia ou uma neocolônia. O Estado e suas instituições, agentes tradicionalmente encarregados de fomentar e aprimorar essa consciência cívica supostamente deficitária, seriam, no Brasil, instâncias ineficientes, corruptas, autoritárias, tomadas por interesses privados e pouco ou nada representativas da maioria da população.

Concordaremos com nosso caro leitor se ele protestar que tal quadro é apenas parcial, e não absoluto. De fato, esse quadro não caracteriza com exatidão tudo aquilo que é nosso país, nossa sociedade e nossa história. Mas se o leitor, munido de um mínimo senso de realidade, concordar que tal quadro traça alguns elementos verdadeiros acerca do Brasil e do que o brasileiro pensa de seu próprio país, isso já nos será suficiente. Pois daí podemos nos perguntar: se o Brasil é tão diverso em sua geografia física e humana, tão violento em sua história, tão brutalmente desigual em sua realidade atual, e ainda por cima com uma população que parece tão pouco atada a valores comuns, por que o Brasil continua a ser um só país, ao invés de se fragmentar em vários? Ou ainda: por que, desde que ele se consolidou como um país, ele quase nunca conheceu movimentos consistentes de separação interna?

A resposta a essa pergunta é o objetivo deste livro, e desde já podemos oferecer um indicativo dela. E quem desejar uma explicação mais aprofundada, fundamentada em dados e argumentos, basta seguir adiante com a leitura. Desde que começou a se constituir como um país independente, isto é, cerca de 200 anos atrás, o Brasil jamais se fragmentou por causa da força coesiva que a nação brasileira mostrou desde seus primeiros momentos de existência, e que só cresceu ao longo do tempo, à medida que essa nação foi se consolidando. Com frequência, estudiosos das coisas de nosso país se referem a fenômenos variados, ocorridos da segunda metade do século XIX em diante, como sendo de “construção”, “criação”, “definição” ou “invenção” da nação. Em nosso entender, porém, essas referências seriam mais exatas se falassem de consolidação, variação ou disputa da nação brasileira. Por volta de 1850, essa nação já estava disponível, consolidada e em pleno funcionamento, ao menos em seus contornos e conteúdos essenciais. Contornos e conteúdos que, desde então e até os dias de hoje, vêm sofrendo numerosas alterações parciais, jamais oposições frontais.

Oferecemos neste livro uma explicação das origens, da consolidação e de (algumas) variações de algo que podemos identificar objetivamente como resultado de um processo histórico concreto: a nação brasileira. Para começarmos a entender essa história, algumas definições iniciais são importantes.


João Paulo Pimenta é doutor em História. Professor do Departamento de História da USP desde 2004, foi professor visitante em universidades do México, Espanha, Equador, Chile e Uruguai. Especialista em História do Brasil e da América espanhola dos séculos XVIII e XIX, Teoria da História e História do Tempo. É autor de dezenas de trabalhos acadêmicos e de divulgação histórica e de dez livros editados em seis países. Pela Contexto é coautor da obra Dicionário de datas da história do Brasil e autor de Independência do Brasil e Formação da nação brasileira.

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