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A festa de Babette | Flávio Limoncic

Segundo a norma social, um convite pra jantar deve ser retribuído. Por aqui, no entanto, ela nem sempre é obedecida. Não que a classe média americana seja rude, é que ela não tem acesso a um elemento fundamental pro exercício sustentado da boa educação: o cheap labor.

Até agora só retribuímos 3 jantares, para 2 convidados, e mesmo assim eles consumiram umas 8 horas do NOSSO labor. Arrumamos a casa – banheiros perfumados e uma varrida geral – fizemos compras, cozinhamos, colocamos a mesa, botamos as crianças pra tomar banho, tomamos banho, recebemos os convidados, servimos pastinhas, jantar, sobremesa e café́ (4 panelas, 6 pratos de jantar e 6 de sobremesa, 5 travessas, incontáveis copos, garfos, facas e colheres). Antes de dormir, morrendo de sono, colocamos tudo na lavadora pra não acumular louça no dia seguinte.  

Os pais de uma amiguinha da Cacau não retribuíram o jantar que oferecemos. Impossível descrever a casa deles, brinquedos pelo chão, farelos sobre a mesa, panelas sujas no fogão… Como poderia ser diferente? Além de cuidar de 4 filhos – dos 2 aos 15 anos –, eles lavam roupa, guardam a roupa nos armários, vão ao mercado, guardam as compras na despensa, cozinham, varrem, cuidam do jardim, trocam lençóis e toalhas, limpam as latrinas, recolhem fraldas e meias espalhadas e, no dia seguinte, fazem tudo sempre igual. Como se não bastasse, travam uma luta inglória pelo pão de cada dia. Se a inexistência de cheap labor complica a vida social da classe média americana, o próprio labor da classe média americana está cada dia mais cheap.

Poliglotas e pós-graduados, eles ingressaram no mundo das relações de trabalho modernas: foram demitidos e trabalham por conta própria. Ralam pra proporcionar aos filhos o padrão de vida que seus pais lhes deram, o que significa, nos dias de hoje, TV de 850 polegadas, implementos pra cuidar do jardim, 2 SUVs, kits de ski, patinação e hóquei no gelo, aquecimento central, ar-condicionado central, manutenção do aquecimento e do ar-condicionado, contas de água, gás e eletricidade, seguro dos 2 SUVs, da casa e de vida, wi-fi, 5 computadores, 5 celulares (a filha mais nova tem celular de brinquedo), planos de saúde, comida e veterinário do gato e do cachorro e dezenas de galões de gasolina, porque até pra comprar o bagel do café precisam ir de carro. Tudo isso plus taxes! E ralam em casa, onde e quando possível: no cantinho da sala, entre uma fralda e outra, mexendo a comida na panela, enquanto dormem. Pra retribuírem nosso convite, teriam que recolher brinquedos, limpar farelos, dar um jeito na cozinha, guardar lap-tops, HDs externos, cabos elétricos e papéis, extratos e cobranças, fazer compras, cozinhar, colocar a mesa, botar as crianças pra tomar banho, tomar banho, nos receber, servir pastinhas, o jantar, a sobremesa e o café (milhares de panelas, pratos, travessas, copos e talheres) e antes de dormir, morrendo de sono, ainda teriam que colocar a sujeirada na lavadora pra não acumular louça no dia seguinte, tudo isso totalizando ao menos 12 horas que, de outro modo, seriam dedicadas – e precisam ser! – à ralação.

Melhor mesmo esquecer a norma social.


Conheça o livro Estados Unidos no século XX, do professor Flávio Limoncic

A festa de Babette | Flávio Limoncic

Exemplo de democracia ou esteio da ditadura civil-militar brasileira de 1964? Paraíso da felicidade suburbana ou cenário de vidas alienadas pela lógica da mercadoria? Evidência da superioridade do capitalismo ou pátria de multinacionais exploradoras da gente e das riquezas alheias? Ao longo do século XX, os Estados Unidos ocuparam centralidade nos debates e acontecimentos por todo o planeta. No entanto, eles não são uma coisa ou outra. São uma combinação complexa e quase sempre contraditória desses aspectos. E tudo o que fazem repercute no mundo: da Missão Apollo às bombas sobre Nagasaki e Hiroshima, passando pela sedução de Hollywood e o napalm no Vietnã, a Ku Klux Klan e o movimento pelos direitos civis, o jazz e a música country, gramados suburbanos, Cadillacs, Vale do Silício californiano, fast-food, internet. Este livro apresenta um panorama da história do país que mais contribuiu para moldar o século XX.


Flávio Limoncic é professor de História da América do Departamento de História da Universidade Federal o Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e dos Programas de Pós-Graduação em História Social e do Mestrado Profissional em Ensino de História da mesma instituição.

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