Este livro é uma exposição detalhada sobre a evolução histórica e os fundamentos das integrações econômica e política na Europa, iniciadas no rescaldo da Segunda Guerra Mundial e que continuaram a se desenvolver vigorosamente ao longo da segunda metade do século XX até as primeiras décadas do século XXI, período em que se testemunhou a emergência do maior e mais complexo mercado comum do mundo e a mais avançada forma de integração regional até a presente data.
A União Europeia (UE) se destaca como a mais avançada forma de integração regional já realizada por obra do entendimento, da negociação e da cooperação entre as nações. Nas suas origens, o processo europeu de integração foi também pensado como o mais eficaz instrumento para se impedir o ressurgimento de tensões que, por duas vezes, levaram o continente ao precipício, em guerras fratricidas que deixaram um saldo insuportável de vidas ceifadas, destruição e sofrimento.
Quando deram início à integração econômica, os líderes dos seis países que tomaram parte no tratado de criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), em 1951, certamente se lembravam de que os utópicos projetos, que longamente germinaram no pensamento político e social europeu, indicavam que a única chance de prevenção contra o poder de destruição que animou os Estados nacionais europeus ao longo da história estaria na sua união, mas talvez não imaginassem que isso levaria à sofisticada estrutura de cooperação econômica e política na qual se transformou a União Europeia no século XXI. Desde esse ponto de vista, portanto, a busca de condições para a crescente integração econômica e a cooperação política que se originou entre a França, a Itália, a República Federal da Alemanha, a Bélgica, os Países Baixos e Luxemburgo – processo que neste livro denominamos simplesmente de integração da Europa – foi a um só tempo um épico multinacional e multigeracional, e um modelo de cooperação inter e supragovernamental de complexidade inimaginável nos seus primórdios – e, pode-se dizer, uma admirável obra de engenharia política, até os dias atuais. Essa etapa inicial foi impulsionada por uma visão de que a união política e econômica poderia ser a chave para prevenir futuros conflitos violentos que haviam marcado a história do continente. O que talvez não fosse totalmente previsto pelos líderes da época era a evolução dessa união inicial em uma complexa e sofisticada estrutura de cooperação econômica e política, que hoje conhecemos como União Europeia. O processo de integração assumiu papel paradigmático na política e na economia internacionais, avançando na concertação de políticas comunitárias que não têm apenas contingência regional, voltada para os países que tomam parte da União, mas que também produzem efeitos que se esparramam sobre toda a economia internacional, em um bom número de agendas, que são de interesse global.
Primeiramente, sua abordagem única de integração supranacional, na qual os Estados-membros transferem parte de sua soberania para instituições comuns, não tem precedentes. Essa transferência de soberania permitiu a criação de políticas e legislações uniformes em áreas cruciais, como comércio, agricultura e regulamentações ambientais, superando barreiras nacionais tradicionais. Além disso, a UE estabeleceu um mercado único com a livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais. Essa integração econômica foi aprofundada pela adoção de uma moeda comum, o Euro, em 2002, por muitos dos seus membros, facilitando o comércio e os investimentos transfronteiriços, e diminuindo dramaticamente os custos de transações financeiras – além de produzir uma alternativa viável e crível ao dólar como reserva de valor a ser acumulada pelos Bancos Centrais e por agentes financeiros ao redor do mundo.
A integração política da UE é igualmente uma construção imponente. As instituições da UE, como a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia, representam um modelo de governança multinível que equilibra os interesses nacionais com os objetivos supranacionais. A uniformização das políticas externas e de segurança, embora ainda em desenvolvimento, aponta para um esforço contínuo em direção a uma voz unificada no cenário global.
A União Europeia se estabeleceu como líder global em políticas ambientais e climáticas, moldando um caminho que transcende as fronteiras regionais e serve de exemplo para outras nações e blocos econômicos. Suas iniciativas, que incluem legislações rigorosas e compromissos de longo prazo para a redução de emissões de gases de efeito estufa, alinham-se com objetivos globais como os do Acordo de Paris, demonstrando um firme compromisso com a mitigação das mudanças climáticas. A promoção de energias renováveis, por meio de quotas e incentivos, também reflete essa liderança, incentivando a transição para uma economia mais limpa e eficiente, ao mesmo tempo que diminui a dependência de combustíveis fósseis.
Na dimensão social, as políticas ambientais da UE geram impactos significativos. A criação de empregos verdes, por exemplo, incentiva o desenvolvimento de novas indústrias, promovendo o crescimento econômico sustentável. Há também uma forte ênfase na justiça ambiental, garantindo que as medidas climáticas não afetem desproporcionalmente as comunidades mais vulneráveis. Essa abordagem promove uma transição equitativa e inclusiva, em que as necessidades sociais são harmonizadas com objetivos ambientais.
Do ponto de vista das agendas de regulação e dos compromissos que são firmados em diversas áreas, são produzidos também efeitos globais que afetam as dinâmicas de competitividade de empresas ao redor do mundo, e não apenas as europeias. Tomemos, para ilustrar esse processo, mais uma vez o caso das agendas ambientais: as estratégias ambientais da UE impulsionam as empresas a adotar práticas que visem à sustentabilidade, melhorando a eficiência e reduzindo os custos em longo prazo, e forçando a adoção de parâmetros de boas práticas ambientais para fornecedores que se originam e que produzem fora do espaço comunitário. O mesmo acontece em agendas igualmente complexas e multidimensionais, como a de direitos humanos, na qual os padrões estabelecidos pelas políticas comunitárias forçam, cadeias produtivas abaixo, a adoção de modelos de produção alinhados à promoção dos direitos humanos – por exemplo, a completa interdição de emprego, em qualquer fase de produção, de trabalho infantil ou de outras formas de trabalho socialmente injusto, como trabalho forçado ou coagido, exploração laboral e violação de direitos trabalhistas. Essa ênfase em sustentabilidade coloca as empresas europeias na vanguarda do mercado global, atendendo às crescentes demandas de consumidores e investidores por responsabilidade ambiental. O modelo da UE demonstra um entendimento de que a sustentabilidade é um componente essencial para o desenvolvimento econômico, social e ambiental, oferecendo um paradigma para a integração de políticas em múltiplas dimensões.
Por fim, a capacidade da UE de expandir-se e integrar novos membros, absorvendo e harmonizando a diversidade de sistemas políticos e econômicos, demonstra uma flexibilidade e resiliência únicas. Os sucessivos processos de alargamento – como são denominados os processamentos de candidaturas e o franqueamento de adesões ao patrimônio comunitário e ao próprio mercado comum – também tiveram causas políticas, especialmente motivadas pela evolução da Guerra Fria e, depois de 1990, pelas necessidades transformadas da segurança e da estabilidade regionais. Assim, nos alargamentos que se sucederam ao longo da história da construção da Europa comunitária, por vezes, a integração de novos membros foi vista como um meio de estender a zona de estabilidade, democracia e prosperidade no continente, especialmente em regiões anteriormente marcadas por conflitos ou instabilidade política.
Outro fator crucial é a ambição de promover, por meio da integração de novos membros, a consolidação da democracia e do Estado de Direito, uma vez que a adesão é frequentemente acompanhada de reformas políticas, econômicas e sociais nos países candidatos. Isso ajuda a fortalecer a democracia, o Estado de Direito e os direitos humanos nessas nações, alinhando-as mais de perto com os valores europeus. Os alargamentos também contribuem para uma melhor capacidade de defesa e segurança da UE, especialmente em tempos de crescentes desafios geopolíticos e ameaças transnacionais como o terrorismo, ou simplesmente diante do risco de eclosão de conflitos que abalem a estabilidade política e econômica, a exemplo da Guerra Russo-Ucraniana, e que tragam riscos eminentes para as economias do bloco.
A combinação desses fatores – supranacionalismo, mercado único, governança multinível, políticas ambientais pioneiras e expansão contínua – cimenta seu status como a forma mais avançada de integração regional existente até o momento. O processo europeu de integração se apresenta como uma majestosa catedral da política internacional – foi obra de gerações, é o símbolo da cooperação possível e desejável. Por isso, sustentamos neste livro que a integração econômica e a cooperação política entre as nações europeias não só desmantelaram antigos temores de guerras internas, mas também realizaram uma das últimas utopias das relações internacionais: a eliminação da guerra como meio de alcançar objetivos externos.
Este livro foi escrito para o público leigo e para estudantes brasileiros no princípio da sua formação em Relações Internacionais. Adotamos a perspectiva histórica, que permite alinhar, desde as suas origens, as dinâmicas políticas e econômicas que levaram alguns dos países da Europa Ocidental a acreditarem que o compartilhamento de parcelas de soberania, em determinadas dimensões da vida econômica nacional, seria largamente compensado pelos ganhos de competitividade e de prosperidade. Essas dinâmicas são sempre contrapostas e permeadas pelos movimentos das relações internacionais que, conjuntural ou permanentemente, apresentaram-se como constrangedores ou impulsionadores da construção da Europa. O livro, propositadamente, não incorpora reflexões teóricas sobre os modelos de integração econômica ou sobre o processo decisório das instituições comunitárias e detalhes sobre as políticas que delas emanam. São duas áreas extensas a serem exploradas nos estudos sobre a União Europeia. Consideramos mais apropriado que elas sejam objeto de estudos específicos sobre o funcionamento das instituições e sobre as diferentes dimensões da formulação e da implementação das políticas públicas comunitárias.
Aprofundar o conhecimento do processo de construção da Europa é uma necessidade para os brasileiros especialistas, ou não, em Relações Internacionais. A União Europeia, além de ser o projeto de integração regional que mais avançou no mundo, tem uma participação extremamente significativa no comércio internacional, atua fortemente na construção de uma governança global do clima e passou a ser um ator das Relações Internacionais com voz própria, embora com meios de ação limitados à vontade e aos interesses dos seus Estados-membros.
Ainda que os diferentes países que a compõem sempre tenham sido importantíssimas referências econômicas, políticas e culturais para o Brasil, o fato é que a complexidade e a profundidade do processo de integração da Europa deram origem a uma frente unida que oferece tanto novas oportunidades como maiores riscos. Por conseguinte, a União Europeia é para o Brasil uma parceria estratégica e um polo alternativo, complementar ou paralelo ao dinamismo das relações com os Estados Unidos e com a China, e mesmo, inserindo-se como alternativa razoável aos limites que são colocados pela crescente rivalidade entre esses dois gigantes na economia internacional. Ao mesmo tempo, a União Europeia é um poderoso opositor nas sempre difíceis negociações comerciais, uma vez que é também uma formidável máquina de produzir subsídios e desvios de mercado, que afetam diretamente os interesses de economias como a brasileira. Acresça-se que a própria experiência da integração europeia oferece lições importantes aos países da América do Sul, seja na perspectiva de se pensar criticamente os fundamentos do Mercosul, seja na de se refletir sobre a importância, os ganhos e os limites de processos negociadores igualmente complexos, como o do Acordo de Livre-Comércio entre o Mercosul e a União Europeia.
O livro é estruturado em sete capítulos que cobrem desde o nascimento da ideia de unidade europeia, suas etapas iniciais de consolidação, os períodos de grandes ambições, até os desafios contemporâneos enfrentados pela União Europeia, incluindo as últimas expansões, crises econômicas, migração, euroceticismo, Brexit, a pandemia e o conflito entre Rússia e Ucrânia. Também são discutidas as principais instituições da União Europeia, as políticas comunitárias e as iniciativas recentes para redefinir o projeto de integração europeia diante dos desafios atuais. Buscaremos situar o processo de construção da Europa no contexto mais amplo da história global, e também procuraremos analisar criticamente o papel de indivíduos, dos Estados-membros, das potências extracomunitárias, dos atores transnacionais e das instituições, tanto na promoção quanto na desaceleração da integração no continente.
Na medida em que propomos refletir sobre a história e a evolução da União Europeia, cremos ser razoável alertar para o fato de que vamos não apenas nos voltar ao processo de construção histórica da União Europeia, mas também procuraremos lançar luzes para os caminhos futuros que essa grande comunidade de interesses e de visões de mundo compartilhados pode trilhar. Encaramos este estudo não só como um olhar para o passado, mas como uma exploração das possibilidades, das aspirações e dos desafios que moldam o continente europeu no cenário global. Enfim, o livro é um convite para entender, refletir e, acima de tudo, participar do diálogo contínuo sobre o destino da Europa comunitária e do seu lugar no mundo contemporâneo – uma história que está constantemente sendo escrita e reescrita pelos povos europeus e pelos governos dos Estados que tomam parte da estrutura de cooperação extraordinária que é a União Europeia.