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Estudantes X Ditadura | Jaime Pinsky

Em meados de 1965, duas décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, os pracinhas sorocabanos receberam um diploma referente à sua participação “na luta contra o nazi-fascismo”. Foi por ocasião de uma sessão solene realizada em um salão nobre do Gabinete de Leitura Sorocabano, em pleno centro da cidade. Fazia um ano que os militares brasileiros haviam derrubado o governo eleito e instituído uma ditadura. Formando a mesa diretora do evento estavam autoridades militares, civis e eclesiásticas, como era comum quando por ocasião de acontecimentos importantes na cidade. Entre bispo, coronel, diretor da faculdade e secretário de cultura da cidade, chamava à atenção a presença de um rapaz muito jovem, que conduzia a cerimônia. No público, além dos emocionados pracinhas (alguns um tanto intimidados, gente simples, que nunca havia recebido uma homenagem, ainda mais em ambiente tão refinado), estavam suas famílias, universitários, curiosos e a imprensa da cidade.

Estudantes X Ditadura | Jaime Pinsky
Imagem de manifestantes durante o período militar – Wikimedia Commons

Religiosos, militares e universitários juntos, em 1965, logo após o golpe militar de março de 1964? Seria uma ala direitista do movimento estudantil? Teriam os jovens sido constrangidos a comparecer a uma atividade militar? Ora, todos sabiam que o movimento militar, que havia derrubado Jango e empalmado o poder, não era exatamente amiguinho de estudantes; muito pelo contrário. E vice-versa. Como, então? Nada como recuperar os acontecimentos para entender essa noite inusitada.

Consumado o golpe militar de 1964, um processo repressivo contra supostos adversários se instalou em todo o país. Em alguns casos, a repressão foi desencadeada por ordem dos líderes do movimento, ou de seus seguidores graduados, recebendo cobertura da imprensa e obtendo repercussão nacional. Em cidades menores, autoridades que se intitulavam representantes do movimento de 1964 botaram as manguinhas de fora e se acharam no direito de decidir o que era “revolucionário” e o que era contrário aos seus ideais. Militares de patente inferior e até policiais sentiram-se na obrigação de confiscar livros, impedir reuniões, fiscalizar peças de teatro e até sessões de cinema. Prendiam pessoas na base do “se eu não sei por que estou prendendo, você sabe por que está sendo preso”. Nada de novo nisso. Sabe-se que, em todas as guerras, revoluções, golpes e demais movimentos, a arraia miúda aproveita-se de uma situação circunstancial para tirar vantagem e arrotar poder. Nazistas contaram com a colaboração de cidadãos de países invadidos, Stalin teve colaboradores de ocasião, disfarçados de comunistas históricos. Por aqui, era comum em algumas cidades menores as autoridades militares tomarem para si a iniciativa de prender e torturar alguns supostos “comunistas” (que era o termo genérico utilizado para quase todos os que ousavam desafiar os usurpadores do poder). Ora, em Sorocaba chegou a haver uma batida em uma sala de aula da Faculdade que cursávamos. Mandaram abrir uma estante onde eram guardados os livros do Centro de Estudos Históricos Varnhagem, que eu dirigia. Fui informado que, na ocasião, haviam levado um livro de capa vermelha (comunista!) sobre a história da Polônia (país comunista!). O fato de o livro relatar acontecimentos do século XIX, antes da implantação do comunismo, foi um detalhe que não interessou ao culto censor…

Hoje, isso parece uma narrativa ridícula, idiota até. Mas, na época, era assustadora. Os militares haviam prendido muita gente em Sorocaba e não estávamos animados com a ideia de sermos presos e torturados por denunciar alguma coisa que nem sabíamos o que era ou poderia ser. Éramos estudantes. Queríamos ter liberdade para ir à faculdade, para lecionar nos colégios (quase todos já dávamos aula) e para deixar claro que éramos contra o fascismo.

Fizemos uma reunião da diretoria do “centrinho”. Alguém sugeriu que fizéssemos uma comissão e fôssemos falar com o coronel de plantão na cidade. Certo, mas com o que na mão? A ideia de pedir um salvo-conduto, em troca de nada, era risível. Foi quando apareceu a ideia salvadora. E se fizéssemos uma homenagem aos pracinhas sorocabanos, gente humilde, que nunca foi lembrada depois do dia de seu retorno à cidade? Afinal, eles lutaram contra o fascismo e o nazismo e aquela havia sido a mais importante participação bélica do nosso exército desde a Guerra do Paraguai. Se nós mandássemos confeccionar um diploma que explicitasse que éramos agradecidos aos pracinhas por terem lutado contra o nazi-fascismo, os militares de hoje não poderiam questionar. Estaríamos elogiando uma instituição pelo que ela fez de bom na Europa durante a Guerra e criticando, nas entrelinhas, o movimento antidemocrático que resultara no Golpe de 1964. A gente poderia pedir ao Exército a lista dos pracinhas ainda vivos, dos familiares dos já falecidos e enviar um diploma a todos…

“E”, disse a ML, “por que não fazer uma entrega pública dos diplomas? E até entregar um ao comandante do agrupamento militar na cidade, um coronel, como homenagem à instituição pela sua luta antifascista?”. Tivemos que superar alguns aspectos burocráticos, mas tivemos o apoio da direção da Faculdade para seguir avante. Pedimos então para falar com o coronel. Marcaram um horário. Foi uma situação inusitada — estudantes, de pé, na sala do chefe militar na cidade, duas meninas e eu, expondo os fatos: Que a sociedade brasileira tem uma enorme dívida para com os militares e voluntários envolvidos na campanha da Itália. Que o final da Segunda Guerra, o evento mais sangrento da História da Humanidade, estará completando 20 anos. Que nosso Centro de Estudos Históricos tem a função de chamar a atenção da população para efemérides importantes, e esta é, fora de dúvida, muito importante. Que queríamos oferecer um diploma para todos os pracinhas vivos e para a família dos já falecidos, ressaltando a bravura, o heroísmo dos brasileiros em sua luta contra o nazi-fascismo. Que não poderíamos fazer isso adequadamente sem a colaboração do Exército.

O coronel olhou fixamente para mim e para as duas colegas de rostinho suave e olhos grandes, disse que iria estudar o assunto, mas que via a coisa com muita simpatia e até alguma surpresa, vindo de estudantes da área de Humanas. Reiterei que não havia por que ele se surpreender, uma vez que sempre fomos contra o nazi-fascismo, assim como ele, com toda certeza. “Claro, claro, meu jovem”, foi sua resposta, acompanhada do que ele imaginou que fosse um sorriso.

Após consultar toda sua cadeia de poder, o que não levou mais de dois dias, o coronel me chamou de volta e, já íntimo, me chamou pelo nome, perguntou a origem dos meus pais, disse que adorava História e “sim, claro, pensei bastante e não há nada contra a homenagem, na qual estarei presente”. Marcamos data, o salão do Gabinete de Leitura nos foi cedido. Desnecessário será falar da emoção dos antigos pracinhas, finalmente lembrados. Eles eram chamados, um a um, recebiam seu diploma e os cumprimentos de todos os membros da mesa. Desnecessário também tentar falar da emoção, ainda maior, das famílias dos homenageados, vivos ou já falecidos, que se deram conta do significado histórico do feito de seu parente e de sua contribuição para a democracia. O público seguramente aprendeu alguma coisa com o que viu e sentiu. Nós, estudantes, voltamos a escrever nossa coluna nos jornais. Fiéis à História, leais à democracia.


Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.

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