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Entrada proibida | Rubens Marchioni

Quando Lídio se mudou para aquele bairro, não imaginava que viveria a experiência de sentir-se estrangeiro na própria terra e invadido na sua privacidade. Nas 24 horas do dia, lidava com as consequências de viver numa rua com pouco movimento humano e com muitos ruídos de carros e motos. E sentia o peso insistente da solidão, preço a ser pago depois de se afastar do grupo de colegas que, assim como ele, também eram policiais rodoviários. A aposentadoria lhe reservou um tipo de isolamento para o qual não estava preparado.

Era um domingo aborrecido de julho, desses em que o frio incomoda até a alma. Lídio se deu conta de que a hora do lanche rondava sua cozinha. A cerração, que daí a pouco se transformaria numa garoa aborrecida, cobria as casas, o bairro e a existência com seu manto gelado. Em parceria com o ruído provocado pelo vento, entregavam uma sensação térmica acima do que a felicidade humana considera confortável e se dispõe a pagar.

Naquele dia, a TV não pôde contar com a audiência de Lídio. Era o tédio falando mais alto numa casa que lembrava o silêncio de uma clausura em dia de retiro espiritual. Os netos não vieram, foram ao parque com os pais, que pagavam uma promessa de levá-los para brincar nos carrinhos elétricos. Aquele casal de pequenos credores afastava qualquer possibilidade de renegociação da dívida – deixar para a próxima semana nem pensar. A outra filha estava fora, participando de um congresso sobre questões ligadas à interferência da pandemia no clima organizacional.

Fim de tarde. Lídio vestia uma camiseta do seu time, sob o rosto vermelho e o cavanhaque mais ou menos bem cuidado. Como de costume, foi à padaria, a cinquenta metros de casa.

Atravessou a rua. O ruído estridente de um carro vermelho de domingo surgiu do nada. Lídio admirou novamente a casa mais bonita da rua, pé direito alto e revestimento que misturava cerâmica e concreto. Esses elementos arquitetônicos se conectavam com ele, porque falavam da resistência que precisou desenvolver frente à vida de policial e no policiamento da própria vida. Andou lentamente. Seus olhos se detiveram na imagem de um ipê em traje de festa, exibindo um amarelo que não se rendia à cor cinzenta e londrina do frio.

Também como de costume, compraria baguetes morenas e uma porção de frios para o lanche de logo mais. 

Dividia essa rotina gastronômica com Lucrécia, sua esposa há algumas décadas e para as próximas, se Deus quiser. Naquela e em todas as noites, todos os dias, todos os séculos sem fim seria assim, amém. No encontro doméstico que transformava em algo inédito, outra vez tomariam chá ou refrigerante, iogurte talvez. E acrescentariam manteiga, requeijão e geleia de damasco, mimo que o genro trouxe de Minas Gerais.

Antes de entrar na padaria, subitamente Lídio foi abordado por Vanda, que jamais conheceu sequer de nome ou de ouvir dizer. Tratava-se de uma mulher bonita, desfilando dentro de uma roupa esporte enfeitada por um colar feito de pedras e cores. Ela lhe pediu um cigarro. Nada feito, Lídio não fumava, nunca fumou. Sem se dar conta, quase desandou a contar sua história momentânea com o primeiro e único cigarro quando ainda era uma criança apenas curiosa.

Entrada proibida | Rubens Marchioni

A mulher entrou com ele, inventando assunto como quem precisa se manter no ar até que entrassem os comerciais. Foi até o balcão, tamborilou com as unhas longas e vermelhas no vidro e pediu um maço sem filtro. Lídio se ofereceu para pagar um café, seu hábito e liturgia, gentileza que Vanda preferiu com leite. Naquele dia, ele dispensou o pão de queijo.

Lídio sentiu o aroma de pão quente. A porta rangeu e deu espaço para o funcionário com a sua enorme cesta de pães. Com a boca cheia de água, pediu duas baguetes e acrescentou uma broa de caxambu àquele pacote.

Driblando o ruído ambiente, respondeu perguntas sobre coisas como local de nascimento, onde havia trabalhado, filhos… Vanda parecia uma repórter sem microfone e com muitas perguntas – o que, quem, como, quando, onde e por que – as respostas de que todo leitor precisa para entender uma notícia. Com frequência, Lídio usava o dialeto policial, seguido de legenda. Apenas se mantinha cauteloso, isso aprendera no quartel a duras penas.

Antes de se despedir, Vanda propôs um encontro, alegando que gostaria de voltar a falar com ele, precisava tirar algumas dúvidas. “Dúvidas?! Que dúvidas, meu Deus?!” – pensou Lídio, intrigado com tamanho interesse por parte de uma bela desconhecida numa tarde gelada de domingo.

Mas o comportamento da estranha, a maneira repentina de sair do nada, seu jeito de se vestir, o vocabulário feito de meias palavras, nada disso inspirava confiança. Ao contrário, tudo apenas fez com que Lídio ficasse com um pé atrás, cauteloso.

Ele teve medo, uma inquietação cheia de movimento agitando-lhe a mente. Pisando em ovos, negou-lhe o pedido e se dirigiu ao Caixa. Sabia bem que no cenário louco do mundo caótico, atores com Oscar na categoria Fraude fazem seu show e encantam os menos avisados, tornando-os vulneráveis como uma criança perdida em dia de tempestade.

– O Google pode me ajudar mais um pouco… – disse ela, olhando para longe.

A despedida foi rápida, como apressada foi a entrada de Vanda num carro de luxo.

Bem depressa, Lídio desapareceu através da calçada feita de buracos, entre carros populares ou quase isso e árvores adolescentes.

Voltou para casa, com passos incertos. Lucrécia não entendeu o motivo da demora. Sem netos correndo e gritando, havia todo o silêncio necessário para uma conversa esclarecedora.

– Tive uma queda de pressão, nada grave. Mas preferi esperar até passar – disse.

Na verdade sua pressão estava alta, compatível com aquele clima de alta tensão. Era coerente. Para Lucrécia, a resposta não respondeu.

Verdade é que a partir desse dia Lídio se dedicou menos ao computador e mudou de padaria. A substituta ficava distante, a algumas quadras dali – tudo bem, ele aproveitaria o pretexto para fazer uma caminhada leve. Além disso, começou a fumar para ver a dança da fumaça que, pensava, ia queimando devagarzinho a sua intranquilidade – não era muito, mas “devagarzinho” já ajudava, por que não?

– Dois maços sem filtro, por favor – ele pediu, convicto, em outro balcão. Para manter a entrada proibida, não cumprimentou ninguém.


Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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