Ainda podemos falar de amor? Ou de amar? De que “tipo” de amor se trata? Se há discursos de ódio contaminando cada vez mais o mundo, adianta falar de amor? Que tal uma epidemia de amor que nos torne mais humanos?
“A linguagem cria mundos”. Esse é um princípio claro que quem se interessa pela linguagem entende bem. A realidade que conhecemos é moldada pela linguagem que utilizamos: palavras nos indicam os elementos do mundo e fazem com que os identifiquemos de acordo com as características que “cabem” em cada um. Ditas, permitem que saibamos também como avaliamos as coisas, as ideias, os sentimentos em função de como e por quem são ditas. As imagens que produzimos podem igualmente mostrar o mundo de uma determinada perspectiva, propondo um julgamento, um lugar bom ou ruim para cada saber, para cada ser, para cada gente. Por isso devemos ter cuidado – e consciência – ao usar a linguagem. E por isso precisamos falar de amor, de amar, de cuidar do outro.
O livro Discurso amoroso na literatura infantil nasceu dessa constatação sobre como a linguagem cria nossos mundos. Há, hoje em dia, muitas pesquisas da área das Ciências Humanas acerca dos discursos de ódio, do negacionismo, das fake news, todas muito necessárias, sobretudo pela denúncia de um lado ruim da sociedade que a linguagem permite criar, transmitir, difundir. Esse livro, porém, pretende iluminar os discursos baseados na ética do amor, que orienta um conviver mais humano (no melhor sentido dessa palavra) e um mundo menos desigual e injusto. Vamos na contramão do ódio, da opressão, das hierarquias injustas que promovem o sofrimento das pessoas. Queremos explorar a linguagem da empatia, do afeto, da afirmação das minorias, dos temas tabus que precisam ser discutidos para termos uma sociedade inclusiva. E fazer pensar.
Nossa proposta é a de um “ubuntu literário”, isto é, de um modo de aprender a conviver e a bem viver por meio de contos ilustrados, de literatura da melhor qualidade, aquela que pode alcançar também o entendimento das crianças. Este é um livro que provoca uma reflexão sobre a leitura crítica, mas também explica o ato de ler criticamente e as estratégias de leitura, incluindo a análise do código visual. O livro trata do conto ilustrado como gênero textual, salientando aspectos fundamentais na relação entre a forma e o sentido, assim como explora a poética da linguagem verbo-visual e a ética amorosa que permeia as histórias – tudo isso com inúmeros exemplos de obras de excelente qualidade estética. Por fim, alguns temas fraturantes emergem durante a análise da linguagem de alguns contos: a representação da mulher, a afirmação da mulher negra, a violência contra a mulher, o antirracismo e a diversidade de gêneros. Comparecem no livro de Jutta Bauer, Marcelo Pimentel, Leo Cunha, André Neves, Odilon Moraes, Chico Buarque, Ziraldo, Jean-Claude Alphen, Martha Altés, Nelson Cruz, Emily Hughes, Carolina Moreyra, Júlia Medeiros, Elisa Carareto, Ruth Rocha, Roger Mello, Mariana Massarani, Stephen Michael King, Bernart Comand, Otávio Júnior, Blandina Franco, Carlos Lollo, Wander Piroli, Mia Couto, Marilda Castanha, Valter Hugo Mãe, Tino Freitas, Felipe Campos, Sylvia Orthof, Maria Amália Camargo, Silvana Rando, Luiz Antonio, Emicida, Thaís Beltrame, Sônia Rosa, Bruna Assis Brasil, Letícia Moreno, Vanina Starkoff, Angelo Abu, Jessica Love, Marina Trach e Maria Teresa Andruetto, entre outros que devo ter omitido.
Consideramos que esta é uma obra para todos que sabem esperançar, que investem na modelagem – por meio da linguagem – de uma sociedade mais justa e solidária, como, em geral, fazem os professores, os artistas, os mediadores de leitura, os pesquisadores que se interessam pela linguagem verbo-visual e pela literatura mais importante que há, a dita “infantil”, porque alcança todas as idades: da infância mais tenra à infância que ainda mora em nós. Se, como afirma Teresa Colomer, a literatura infantil é a mais clara evidência de como uma sociedade deseja se ver, busquemos obras criativas e sensíveis que nos mostrem caminhos possíveis para tornar nossa realidade boa para todas as pessoas. Todas mesmo. A linguagem cria mundos, sim. Mas pode recriar o nosso também. Então vamos juntas e juntos falar de amor nos contos ilustrados e contagiar nossa gente e nossa realidade.
Boa leitura!
Beatriz Feres é professora de carreira, com atuação no ensino fundamental e médio, graduação e pós-graduação. Como pesquisadora da Universidade Federal Fluminense, investiga estratégias de leitura, linguagem verbo-visual, contos ilustrados e o discurso amoroso. Bia, como mais comumente é chamada, orienta projetos na área da Semiolinguística, explorando modos de dizer sem dizer (só mostrando ideias, comportamentos e sentimentos), essenciais para a interpretação de textos e, por desdobramento, para a formação de leitores críticos. É coautora de Semiolinguística aplicada ao ensino e autora de Discurso amoroso na literatura infantil publicados pela Editora Contexto.