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Direitos humanos e Relações Internacionais | Lançamento

Domínios da proteção internacional dos direitos humanos
A expressão “proteção internacional dos direitos humanos”, já mencionada, remete a todas as normas, estruturas e dinâmicas que têm origem ou encontram fundamento no plano internacional. O gradual reconhecimento da importância da proteção dos valores humanos para assegurar relações pacíficas, prósperas e plenas na comunidade internacional ensejou, ao longo do tempo, o desenvolvimento de normas e estruturas institucionais para fazer frente aos mais variados tipos de sofrimento humano e injustiças experimentados ao redor do globo. A contínua expansão da proteção internacional dos direitos humanos resultou em um aparato protetivo vasto e complexo.

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A frequente referência aos termos “direitos humanos” e “direito humanitário” para se referir aos esforços de proteção a indivíduos e grupos indica que a proteção internacional dos direitos humanos configurou, ao longo do tempo, domínios especializados. A especialização da proteção internacional dos direitos humanos em domínios reservados representa um avanço organizacional para sistematizar respostas a sofrimentos humanos recorrentes, mas que configuram problemas distintos, caracterizados por necessidades específicas e que demandam ações diferentes. A organização da proteção internacional de direitos humanos em domínios especializados se mostra útil para fins de clareza analítica quanto à identificação de casos, organização do aparato normativo, localização de grupos vulneráveis, delimitação de problemas, proposição de ações práticas e adequação da atuação profissional no campo.

Direitos humanos e direito humanitário correspondem aos principais domínios da proteção internacional dos direitos humanos. De modo geral, o domínio do direito humanitário remete à proteção humana em momentos de guerra, ao passo que o domínio dos direitos humanos abrange todos os demais aspectos da proteção humana em tempos de paz. A configuração desses domínios se correlaciona à trajetória de afirmação internacional de direitos. De acordo com a história do Direito Internacional, primeiro consagraram-se normas internacionais para proteção de indivíduos e grupos em circunstância de beligerância (formulando o ramo do Direito Internacional Humanitário) e, posteriormente, à medida que se ampliava a consciência de que o sofrimento humano extrapolava os tempos e circunstâncias de guerra, consagraram-se normas internacionais para proteção humana como um todo (inaugurando o ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos).

A projeção de quadros internacionais envolvendo fenômenos sociais complexos tem colocado desafios aos domínios especializados da proteção internacional aos indivíduos e grupos. A intensificação do fluxo global de pessoas e o aumento do número de refugiados ilustram tais fenômenos transfronteiriços complexos, que envolvem fatos sociais multiconectados e demandam convergência e justaposição de práticas entre os terrenos do direito humanitário e dos direitos humanos. Quando indivíduos e/ou grupos chegam aos campos de refugiados, buscam amparo para as suas necessidades básicas de sobrevivência. As expectativas iniciais são de que tal situação de desamparo humanitário seja excepcional e transitória, enquanto persistirem as causas que ensejaram o deslocamento. Contudo, em diversos casos observados atualmente, os campos de refugiados têm se tornado experiências de vida prolongadas ou até mesmo permanentes. Ao perdurar por anos e, talvez por gerações, as necessidades humanitárias iniciais logo se transformam em demandas de direitos humanos. Diante de realidades intrincadas, que sentido faz segregar respostas internacionais entre esforços humanitários ou direitos humanos se a complexidade da condição impõe a realização simultânea de ambas as necessidades?

Os problemas globais complexos, que resultam da intersecção de diversas injustiças e sofrimentos humanos, sugerem reconsiderações quanto aos tradicionais domínios do direito humanitário e dos direitos humanos. A escassez de parâmetros para lidar com casos que ficam à margem das normas internacionais e das dificuldades práticas para prover soluções eficazes em situações complexas tem levado estudiosos a desenvolver a ideia de um novo domínio, o direito da humanidade. O direito da humanidade corresponde a um domínio da proteção internacional dos direitos humanos em fase de elaboração intelectual, sendo seus pressupostos encontrados em obras como Humanity’s Law, de Ruti Teitel (2013). No direito da humanidade, o conjunto mais amplo de normas e discursos éticos relacionados à humanidade orientam os esforços de proteção normativa e os repertórios de ação técnica e política para fazer frente às consequências humanas decorrentes de fenômenos globais complexos. Apesar de ainda em construção, o domínio do direito da humanidade não se coloca no plano puramente aspiracional. Parte da literatura sugere que essa transformação esteja em curso, indicando como evidência os esforços de responsabilização internacional de indivíduos que praticaram crimes contra a humanidade e a intensificação de iniciativas de conscientização quanto aos deveres individuais para com o meio ambiente, a saúde global e a democracia.

Veremos o delineamento de alguns parâmetros comparativos entre os domínios dos direitos humanos, do direito humanitário e do direito da humanidade no Quadro 1 a seguir, que favorece uma visão analítica clara quanto aos contornos que a proteção internacional dos direitos humanos pode assumir diante de diferentes problemas com interface nos direitos de indivíduos, grupos e da humanidade como um todo. Os contornos dos domínios da proteção internacional dos direitos humanos foram sistematizados por Michael Barnett, em artigo publicado no periódico International Theory, em 2018, sobre o qual apoia-se a exposição e descrição a seguir.

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Os domínios da proteção internacional dos direitos humanos se organizam pelo tipo de problema que pretendem resolver e objetivos que buscam alcançar. O direito humanitário tradicionalmente se volta às ameaças iminentes à vida, oriundas de situações extraordinárias que afetam o suprimento das necessidades básicas de populações em massa, tais como desastres naturais, guerras civis e surtos de fome. Os direitos humanos, por sua vez, lidam com violação ou denegação de direitos que acabam por comprometer a capacidade de vida e desenvolvimento humano pleno e livre de abusos, como a tortura e as discriminações em geral. O direito da humanidade se propõe a abranger todas as formas de sofrimento humano concorrentes que colocam a humanidade sob risco de extinção, como as migrações climáticas e as pandemias globais. Assim, respectivamente, o repertório normativo e prático do direito humanitário objetiva oferecer alívio imediato e salvar vidas; o dos direitos humanos busca combater injustiças estruturais; e o do direito da humanidade, visa garantir a sobrevivência da humanidade.

Os domínios da proteção internacional dos direitos humanos podem ser comparados em termos da linguagem, dos fundamentos e repertório de ação empregados. No direito humanitário, o repertório de ação envolve práticas de natureza tipicamente técnica e apolítica. As respostas humanitárias internacionais consistem em atos incondicionais de alívio das necessidades humanas que não questionam as circunstâncias ou origem das tragédias experimentadas em situações de emergência. As ações humanitárias se fundamentam em imperativos éticos e morais, sendo que atos de generosidade e empatia (como a doação de alimentos, medicamentos e a prestação de serviços de saúde) correspondem ao principal conteúdo das ações humanitárias. Nos direitos humanos, o repertório de ação para combater injustiças se constrói a partir da promoção de mudanças nas estruturas de poder e de autoridade que colocam indivíduos e sociedades em situação precária. As ações de direitos humanos se valem da linguagem legal para confrontar os Estados quanto às obrigações de direitos humanos assumidas no plano internacional. No direito da humanidade, o repertório de ação combina práticas técnicas e políticas para garantir a sobrevivência humana em circunstâncias complexas. Essas ações, fundamentadas em bases éticas e/ou legais, são articuladas em rede como forma de ativar responsabilidades compartilhadas entre todos os atores que se encontram conectados, de alguma forma, ao sofrimento humano.

Por fim, os domínios da proteção internacional dos direitos humanos produziram narrativas particulares quanto às perspectivas de minimizar o sofrimento humano e combater injustiças ao redor do mundo. No direito humanitário prevalece a narrativa da precariedade. Como nesse domínio o cenário internacional costuma ser visto como instável e sujeito a riscos iminentes de violência em massa, profissionais e intelectuais do campo humanitário consideram a possibilidade de retrocesso como algo sempre alarmante, ainda que frequentemente admitam esperança em tempos melhores. Nos direitos humanos predomina a narrativa de progresso. Como nesse domínio o cenário internacional costuma ser avaliado a partir do acúmulo histórico de direitos, profissionais e intelectuais do campo dos direitos humanos consideram factível a possibilidade de avanços, ainda que as transformações sejam necessariamente lentas e processuais. Como o domínio do direito da humanidade ainda se encontra em fase de construção intelectual, não é possível apontar uma narrativa prevalecente. Apesar disso, o cenário internacional costuma ser avaliado pelos intelectuais como um espaço desagregado, em que os direitos e as responsabilidades compartilhadas entre os atores podem promover profundas transformações na comunidade humana.

Em suma, os domínios da proteção internacional dos direitos humanos organizam a proteção dos valores humanos em nichos especializados, onde se congregam normas, linguagens, estruturas, mecanismos, repertórios de ação e conhecimentos específicos para os diversos fenômenos políticos e sociais com potencial impacto sobre a condição humana. Este livro concentra-se prioritariamente nos desenvolvimentos gerais observados no domínio dos direitos humanos. A escolha, metodologicamente orientada, pelo domínio dos direitos humanos não limita a aplicação dos conhecimentos aqui apresentados apenas ao terreno da “proteção humana em tempos de paz”. Ao contrário, todo os conhecimentos apresentados nesta obra se mostram coerentes com uma visão de mundo expandida, em que o binômio guerra/paz nem sempre corresponde aos contextos em que ocorrem os diversos fenômenos internacionais com potencial impacto sobre a proteção humana. Portanto, os conhecimentos que serão apresentados se mostram válidos para subsidiar análises criteriosas, preparando estudantes e profissionais para múltiplas atuações no campo da política internacional dos direitos humanos.


Isabela Garbin é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da mesma instituição. Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, foi pesquisadora visitante da Universidade de Harvard, Estados Unidos, onde também realizou estudos pós-doutorais.