Ao relembrar quase quarenta anos de convivência com numerosos povos indígenas, sobretudo em Rondônia e Mato Grosso, percebo que era especial foi a nossa, a dos mais maduros. Não que encontrássemos apenas um esplendor. Fomos testemunhas vivas de muitas das tragédias e violência da ditadura militar documentadas pela Comissão da Verdade, também de outras ainda pouco registradas. Epidemias e massacres reduziam a população indígena à metade em cada década. Conhecemos, porém, a Floresta Amazônica quase íntegra, habitada por alguns povos recém-contatados (enquanto tantos outros tinham a experiência de exploração por não índios, seringalistas, mineradores, ou haviam sido exterminados pelos estranhos). Os laços comunitários indígenas, o afeto e mesmo erotismo permeando o cotidiano, os rituais mágicos de pajelança, a reciprocidade nos dons e a colaboração fascinavam. É surpreendente descobrir um pequeno grupo no qual a propriedade individual e comercial, a acumulação, o dinheiro (então inexistente) não têm espaço. Festas, arte, trabalho misturados, mutirões, trocas, dons, alegrias, risadas, um renascimento quando um mínimo de proteção pelo Estado era estabelecido, com terras demarcadas. Queríamos decifrar o mistério de espantosas regras sociais na economia, no amor, no parentesco, admirávamos a igualdade tão maior que a nossa, embora a vida indígena contivesse imperfeições que nos chocavam.
No final dos anos 1970 e início dos 1980, quando os povos indígenas ainda não tinham organizações e eram proibidos de viajar para reivindicar seus direitos, tínhamos um papel relevante em sua defesa. Havia indigenistas que eram verdadeiros heróis, pois ficavam ao lado dos povos sem interrupção, enquanto os antropólogos, mais folgados, iam e vinham, enriquecendo de sentido sua existência, mas escapando… como o personagem central de Os passos perdidos de Alejo Carpentier.
Tivemos, nesse período, a esperança de resolver a questão indígena, demarcar todas as terras, expulsar invasores, garantir as riquezas do solo e subsolo aos verdadeiros donos originais, preservar floresta e ambiente, ver os primeiros habitantes atingindo a cidadania plena brasileira, respeitados. De fato, a Constituição de 1988 foi uma grande conquista, assim como a Convenção Internacional 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989, a Declaração dos Direitos Linguísticos e outras leis; nos anos subsequentes houve grandes avanços no protagonismo e nos direitos indígenas.
Hoje, para os povos indígenas e para os moços que por eles se apaixonam, tudo parece muito mais difícil e complexo. Acirrou-se o embate entre os povos e um Estado brasileiro incorporado e dirigido pelo poder econômico. É um desespero diário: mineradoras, garimpo, hidrelétricas, soja, gado, as grandes construtoras dominando o congresso e o executivo brasileiros, aniquilando as instituições que defendem os direitos indígenas.
Mesmo nesse quadro histórico sombrio, os povos indígenas se organizaram, ganharam projeção, falam hoje por si, com representantes admiráveis, homens e mulheres.
Os primeiros povos que conheci vestiam-se com pinturas de corpo e adornos régios, de fazer inveja aos melhores estilistas urbanos – as nossas roupas ainda eram supérfluas, não perturbavam a beleza das formas e peles perfeitas. Hoje nos encontramos em debates de escritores indígenas, de cineastas, de ativistas, de professores e pós-graduandos universitários, circulando por países diversos, na batalha contra as hecatombes como a da Vale em Mariana, contra as hidrelétricas no rio Tapajós e o fim da Floresta Amazônica, ou contra a destituição do nosso povo mais numeroso, os Guarani. Estes percorriam a Av. Paulista em 2017, com cantos de uma força ancestral, tentando reverter a expulsão de pequeno lote de terra em Jaraguá, na periferia de São Paulo. Mais e mais protestos são urgentes diante dos pesadelos inventados pelos governantes a cada semana, em troca de votos. Como o da ameaça de ensino religioso em escolas públicas, que levará o Brasil ao fundamentalismo, esmagando a alma dos que não têm chão para ensinar, imperdoável retrocesso na luta crescente pela diversidade cultural.
O livro despido e vestido do título não descreve a situação indígena, não é uma narrativa, nem um balanço de sucessos e derrotas, ou uma denúncia, como a de Rubens Valente, em seu magnífico Os fuzis e as flechas. Contém alguns artigos já publicados, um bom número na revista Estudos Avançados. Os inéditos evocam relances, temas e pessoas que não couberam em nenhum relatório ou monografia, mas teimam em voltar à tona e à memória, livre expressão, como as velhas canções que de repente, sem motivo, entoamos depois de muito tempo.
Betty Mindlin é antropóloga, autora de Diários da floresta e de sete livros em coautoria com narradores indígenas, como Vozes da origem e Moqueca de maridos, traduzido para várias línguas. Pela Contexto, é coautora de As religiões que o mundo esqueceu e autora de Crônicas despidas e vestidas.