Com mais de 200 países espalhados pelo mundo tem gente que ainda acredita que uma nação se cria por decreto. Que qualquer maluco morando no meio de um continente cria, do nada, o Umbigustão e exige assento na ONU, com direito a voto e tudo o mais. Não é bem assim. Uma nação se cria a partir de três elementos: um povo, um território e um mito. Sei, logo um espertinho vai lembrar que o povo judeu não teve território próprio por 20 séculos, que os ciganos não têm até agora, que curdos vivem divididos entre o Iraque, o Irã e a Turquia, sem ter poder político em lugar algum, etc. Então vai a ressalva: como regra geral o território é condição essencial para um povo dispor de um Estado. Mas sem povo e sem mito não há Estado.
Mito? Do que estamos falando? Vamos com calma e chegaremos lá. Para início de conversa é bom lembrar que estados nacionais são coisa recente: a maioria deles não tem mais do que 200 anos. Claro que (olha o mito!) ninguém se conforma com uma idade tão nova, razão pela qual buscam envelhecer procurando pistas de existência pretérita. O Iraque, por exemplo, quando sob o jugo de Saddam Hussein, afirmava existir desde o tempo dos sumérios, como se tivesse havido uma continuidade cultural de 4 mil anos na região. Não por acaso, Hussein chamava uma de suas unidades blindadas de Divisão Hamurabi… O único detalhe é que não se tratava do mesmo povo, nem da mesma língua, nem religião, nem costumes, nem nada do tempo de Hamurabi, mas idade provecta, para o ditador, era sinal de legitimidade.
Hitler fez o mesmo. Inventou que supostos arianos tinham sido os grandes de todos os tempos: na Pérsia, na Índia, em Roma e na Alemanha, é claro. Concluiu que a superioridade dessa raça (ariano era raça para esse criminoso) deveria ser preservada de eventuais cruzamentos com eslavos, negros e principalmente judeus. Que havia uma continuidade desde os tempos ancestrais (como teria mostrado Wagner em suas óperas) e que o Estado dirigido por ele tinha legitimidade biológica, portanto histórica. Muito pirado? Não o suficiente para convencer boa parte da população alemã. O nacionalismo é um perigo…
Mito também é aquele que foi engendrado no Brasil, segundo o qual somos uma mistura homogênea de três raças, a branca, a vermelha e a negra. Nas carteiras dos grupos escolares, ouvíamos historinhas à la José de Alencar sobre indígenas orgulhosos, negros habilidosos e brancos empreendedores juntando-se para, em luta contra os holandeses em 1654, forjar nossa identidade. A ideia de uma nação brasileira em meados do século XVII é tão inconsistente quanto a da identidade iraquiana em tempos dos sumérios. A elaboração dessa ideia nacional, apimentada com o fracasso do sacrifício de Tiradentes mais de um século depois e temperado com a incrível história do rei pai que promove a independência e depois se manda para Portugal para garantir o trono para o rei filho é fruto de períodos bem posteriores.
No Brasil tivemos uma desvantagem. Enquanto em nações como a França, a Inglaterra e até os EUA a necessidade do estabelecimento de um Estado nacional decorreu do desenvolvimento das forças produtivas e da criação de uma consciência nacional, no Brasil, o Estado nacional, como tantas outras coisas, foi criado por decreto. O chamado grito do Ipiranga não significou absolutamente nada para a maioria esmagadora da população do território. Nem para os escravos, nem para os índios, nem para a população do campo, talvez apenas para uma parte pequena e letrada (e proprietária) de moradores de cidades, uma parte ínfima de Brasil.
Criado por decreto em 1822 o Estado brasileiro não “pegou”. Continuamos sem autonomia, substituímos Portugal pela Inglaterra, índios continuaram sendo invadidos e barbarizados, escravos continuaram sendo trazidos para trabalhar no eito, marginalizados continuaram à margem. A elite continuou arrogante, traço não muito difícil de perceber até hoje. Para sobreviver, o povão aprendeu a ser dissimulado, traço também tristemente evidente. A população não se sente representada por seus representantes, o poder político tem sido o melhor caminho para a corrupção, ninguém abre mão dos seus privilégios e os sonegadores apresentam tudo isso como álibi para não contribuir para o bem comum.
Será que agora, finalmente, a Nação se apropriará do Estado?
Jaime Pinsky, professor titular da Unicamp, doutor e livre-docente da USP, diretor da Editora Contexto.