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Caminhar é preciso. Esperançar é indispensável | Rubens Marchioni

Para chegar à escola onde iniciei os estudos, aos sete anos de idade, na pequena cidade do interior, eu percorria alguns quilômetros de estrada de terra. Fazendo a ligação entre o sítio pacato onde nasci e a cidade que me encantava, apesar de simples, ela me conduzia à experiência de um choque inevitável.

É claro que essa caminhada exigia de mim uma concentração intensa nos passos e no chão. De lá bem poderia surgir, cheia de medo e pronta para se defender, uma cobra afoita, entre tantas que habitavam aquele lugar. Ou um animal assustado, fugitivo de algum pasto cuja cerca generosa convidava para uma aventura em terras nunca dantes navegadas. Sem contar a brincadeira nefasta de adultos inconvenientes e desocupados. Eles insistiam na ideia de tirar a roupa e expor a nudez de uma criança. Assim, o menino acuado não tinha para onde fugir, naquele que era o território de ninguém, dominado pelo mais forte e mais veloz. Um beco sem saída. A primeira aula diária testava a resistência física e emocional do estudante. Mas era preciso caminhar. 

Durante quatro horas diárias, eu habitava a sala de aula e trafegava pelos solenes corredores da escola. O prédio ostentava nada menos que dois andares. Era assim que participava de uma trilogia: ele, a casa do ex-prefeito e, é claro, a solene residência paroquial. Cada vez mais, eu tomava consciência do quanto aquele espaço não era em nada parecido com o outro de onde eu vinha. Isso me forçava a lidar com aquela realidade mantendo um controle fluente da situação. Uma situação sempre desafiadora pelos perigos que escondia. Eu era um estrangeiro, circulando num terreno que não falava a minha língua, não se conectava com a minha cultura rural.

O que é um chuveiro? Como se sente quem dispõe de uma lancheira com sanduíche e suco natural? Que mundo é esse?

Não me lembro se essa sensação despertava em mim o desejo de pertencer àquele mundo tão distante. Apenas posso afirmar que eu tinha de desenvolver uma intensa capacidade de dialogar com aquela realidade, ao mesmo tempo segura e ameaçadora.

Naquele cenário, um diretor prepotente quebrava uma vara de bambu nas costas de um aluno, dentro do banheiro. Pouco depois, na sala de aula, a força física do professor partia em duas uma régua nas mãos ou na cabeça de um aluno. Em geral, as unhas da criança estavam sujas da colheita de café. Mas aqueles mestres não se davam conta do fato de que na casa onde o aluno habitava não havia confortos como banheiro, pia, sabonete líquido, toalha lavada com sabão em pó e amaciante, apenas para citar alguns pequenos luxos esperados para uma residência normal. Não, a nossa vida não era normal. Nossos costumes não eram normais. Nossos pais não eram normais. Nosso normal não era normal, não seguia linhas retas.   

Excluídos os exageros do autoritarismo antipedagógico, a verdade é que eu gostava de toda aquela assepsia estranha aos meus costumes. Talvez até esboçasse, ainda que de maneira inconsciente, a esperança na conquista futura de espaços onde a minha vida se desenharia de maneira igualmente organizada e limpa, livre do peso militar de qualquer tipo de instituição.

Penso que foi a partir daí que passei a me interessar por lugares bonitos e bem cuidados, organizados. Embora sempre tenha mantido o cuidado de não absolutizar esses elementos, que deveriam ser acessórios a serviço de uma vida livre e feliz. Assim, a minha resiliência foi se desenvolvendo ano após ano. Durante esse processo, experimentava obstáculos que surgiam no caminho, nessa operação que consistia em “comer o boi aos bifes”, até que outra nova conquista se tornasse possível e realizada. Seguia de esperança em esperança.

Hoje, tenho consciência do quanto já andei nessa estrada de terra que me conduz para um mundo que me encanta. Tudo de que preciso é, seguindo o filósofo Mário Sérgio Cortella, transformar a palavra esperança no verbo esperançar. Cortella foi discípulo do mestre Paulo Freire, de quem ouvi que “A esperança que não se faz na ação não é uma esperança esperançosa.”.

Isso é trabalho de uma vida. Labuta que pode começar aos sete anos de idade, por que não?


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto.  https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]