Era meia noite de um dia de verão. Com algumas janelas abertas, a cidade dormia um sono previsível e abafado. Lá fora, veículos e pessoas cumpriam suas jornadas, indo e voltando. Num trajeto rotineiro, conduziam a vida para o trabalho ou em busca do repouso merecido.
Mas não haveria descanso em todas as casas. Não haveria descanso naquela casa em particular, onde, de repente, a temperatura interna subiu a ponto de estourar o termômetro mais resistente. Era uma velha construção, levantada nos anos 1950, sem critérios arquitetônicos, com engenharia duvidosa e manutenção que deixava a desejar. Era previsível o fato de que, mais cedo ou mais tarde, aqueles velhos fios, calados até então, se chocariam, provocando faíscas irritadas e prontas para se espalhar.
O fogo inclemente acordou seus moradores. A fumaça ameaçava sufocar velhos, jovens e crianças. Sobretudo aquela menina de um aninho, aconchegada num berço repetido.
Honório, o vizinho, se colocou dentro da casa, ajudando no resgate de pessoas e animais. Esse negro idoso deixou de lado o fato de carregar 79 anos de vida sobre os ombros arqueados e a coluna desconjuntada. Deixou de lado também o fato de que sua saúde física tinha uma resistência insuficiente para grandes empreitadas. No entanto, a vida dos ameaçados de morte contava mais que tudo isso – tudo podia esperar, inclusive a pouca saúde. Seu objetivo era garantir a segurança de cada uma das vidas em situação de risco. No domingo anterior, na igreja que o recém-convertido frequentava religiosamente, o tema da pregação foi a prática do altruísmo. Ele se sentira desafiado pelo pastor, que do púlpito insistiu no poder destruidor da indecisão e das palavras vazias. “Não espere a casa do seu irmão pegar fogo para fazer alguma coisa por ele. Inclusive porque a casa pode nunca pegar fogo” – insistiu o clérigo. Pegou.
As chamas devoravam aquela moradia e o que ainda restava para seu consumo voraz e seu desejo louco de produzir muita cinza, fumaça e desespero. Honório pensou no fogo do Inferno. Comparou os dois e preferiu encarar o que estava à sua frente, imediato, bem menor e menos assustador. Na pior das hipóteses, esse poderia ser controlado pela força humana.
Velho e doente, Honório lutou como herói junto dos bombeiros. Encontrou forças onde nada existia. Agora trabalhando em parceria, tudo fez para salvar pessoas e animais que, sozinhas, teriam poucas chances de fugir com vida, tamanhas as proporções que a tragédia tomou num tempo muito curto.
Todos se salvaram. Todos, menos a casa, da qual restaram apenas as paredes, fumarentas e enegrecidas pelo fogo, entregues aos bombeiros para a prática rotineira de rescaldo e avaliação dos prejuízos materiais. Isso porque as perdas afetivas, essas ninguém pode calcular. Ainda não inventaram o instrumento capaz de obter resultados precisos nesse quesito subjetivo.
Todos se salvaram. Menos o cachorro Maroto, muito velho e meio cego, que não teve a mesma sorte. Na fuga, desnorteado, ele correu para a rua e foi atropelado por uma viatura do Corpo de Bombeiros. Isso marcaria a vida do velho negro. O altruísmo pode encontrar obstáculos e limitações. É do jogo. Mas oferecer a própria vida pelo outro continua tendo um poder milagroso e resultados que as boas intenções estão longe de conseguir.
PrimeiЯa versão
■ Um homem está dirigindo pela sua estrada preferida. Na direção contrária, vem outro carro, dirigido por uma mulher, que tenta se aproximar para lhe dizer algo. Mas o homem está preso ao paradigma segundo o qual “mulher ao volante só faz besteira”. Por conta disso, fica muito irritado. Mesmo assim, ela se aproxima e grita “pooorcooo!!”. Sem pensar duas vezes, ele responde, cheio de fúria: “vaaacaaa!!” E atropela um porco logo à frente.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected].