Como funciona a criação artística? Que mistérios envolve essa prática, aparentemente distante alguns milhares de quilômetros das nossas possibilidades humanas? A pergunta intriga escritores e aqueles que assistem à sua luta posicionados do lado de fora da arena.
Essa atividade lembra o ato de preparar um prato que comunica um desejo, uma filosofia de vida. E se expressa com talento, sensibilidade e arte. Tudo pensado para não ferir o paladar dos convidados mais exigentes. Assim, aventurar-se pela criação artística é tão gratificante como trazer a alma para uma festa.
No entanto, o interesse em descobrir como é possível escrever deve respeitar a etiqueta. E ela consiste em sentar-se na cadeira de quem cria para entender que o escritor sabe do que pode e do que não pode na hora de criar. Quanto ao processo, não tem maiores explicações a dar. O que ele explicaria, afinal?
Numa entrevista, [Escritores: entrevistas da Revista Submarino. Org. Eduardo Maretti], o escritor Carlos Heitor Cony ouviu a seguinte pergunta: “A criação artística sempre traz uma traição?” Ao que ele respondeu: “Há uma teoria que diz que o artista pode tudo. Mas não pode cometer uma vilania em nome de um ideal artístico. É o caso de achar que com sua pele posso fazer um abajur bonito. Daí tiro sua pele toda, faço um tratamento e obtenho um efeito de luz que ninguém conseguiu até hoje. Artisticamente, estou realizado. Posso ganhar muito dinheiro. Vai valer fortunas. Mas valeu a pena você ser morta? A crueldade que fiz contra você não justifica o resultado do produto final. Dou esse exemplo porque, na Segunda Guerra, os alemães fizeram muitos abajures com pele humana”.
No entanto, em geral, o escritor não quer ser alguém que precisa revelar processos complexos da sua atividade criadora, para a qual não existem regras. Sem contar que nem sempre há grandes revelações nesse sentido, capazes de confirmar a ideia de que ele é alguém que se utiliza de caminhos sobrenaturais para fazer a sua arte.
Uma prova disso? Perguntaram ao escritor russo Anton Tchekhov qual era seu processo criativo – pergunta solene. Tchekhov esticou o braço e apanhou um cinzeiro que estava sobre a mesa. Mostrando-o, disse: “Meu processo criativo é esse: amanhã vou escrever um conto que vai se chamar ‘O cinzeiro’”.
Assim como Tchekhov, o brasileiro Luis Fernando Veríssimo deixa muito patente o quanto escritores são apenas seres humanos: “Minha musa inspiradora é meu prazo de entrega”.
Não por acaso o americano Ernest Hemingway se sentiu pouco à vontade quando teve de responder a uma pergunta num contexto semelhante ao de Cony: “Essas perguntas que abordam a criação artística são realmente uma chateação”. Veja a resposta do jornalista Nobel de Literatura: “Uma pergunta inteligente não deve ser nem um prazer nem uma chateação. Mas ainda acho que é muito desagradável para o escritor falar sobre como ele escreve. Escreve para ser lido com os olhos e nenhuma explicação ou dissertação deveria ser necessária. Pode ter certeza que existe muito mais no que se escreve do que aquilo que se lê numa primeira leitura e, por ser assim, não é função do escritor explicar o que escreve ou organizar excursões, como um guia turístico, através da região mais difícil de sua obra”. [Os escritores – 2. As históricas entrevistadas da Paris Review. Companhia das Letras].
Tudo bem quanto a desejar saber como trabalham. Mas é preciso lembrar que, pela expectativa descabida que sugerem, algumas perguntas causam desconforto, já que nem sempre o escritor dispõe de todas as explicações esperadas. Por que alguém escreve? Escreve para ser lido. E como escreve? Em geral, seguindo o método sugerido pelo poeta chileno Pablo Neruda: “Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca ideias.” Só isso.
Mas entender como a criação artística funciona é um trabalho que traz melhores resultados quando a pesquisa é feita por meio da prática, escrevendo, muito mais do que por meio de uma longa entrevista. Escrever é falar no papel e editar. Só isso. Não há nada escondido. E, portanto, não há nada a ser revelado por meio do bisturi mais audacioso.
O escritor tem uma missão. Trabalhando sem mistérios, acredito nos resultados que brotam da minha pequena ação criadora, ainda que não provoquem alterações no sistema solar. Escrevo porque gosto de fazer amor com as palavras. E de entregar aquilo que nasce desse meu romance sem regras, a quem eu puder acrescentar a chance de uma nova reflexão. Ou de um sorriso inesperado no rosto. Só isso.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]