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A terminologia de Benvenistee os limites de um guia conceitual

O estudo da terminologia de Émile Benveniste não é recente; é possível encontrar vários trabalhos sobre ela, em especial no mundo francófono. No entanto, no Brasil, não temos tradição de estudos terminológicos de linguistas per se; e nota-se a ausência de um trabalho dessa natureza em relação a Benveniste em especial.

A terminologia de Benveniste já recebeu um mapeamento – talvez o primeiro – no Le lexique d’É. Benveniste, publicado em dois volumes, em 1971 e 1972, nos “Documenti di lavoro e pre-pubblicazioni” do Centro Internazionale di Semiotica e di Linguistica da Uniservitá di Urbino, na Itália. O Le lexique é formado por 182 termos que dizem respeito à reflexão de Benveniste ligada à enunciação, mas não apenas; há também termos e definições oriundos de estudos comparatistas e de linguística geral do autor. Jean-Claude Coquet precisa, no Prefácio que faz ao primeiro volume, que foram utilizadas cinco fontes para a elaboração do trabalho. São elas: os artigos “Structure des relations d’auxiliarité” (1965); “Termes de parenté dans les langues indo-européennes” (1965); “Formes nouvelles de la composition nominale” (1966) e “La forme et le sens dans le Langage” (1966); além do livro Problèmes de linguistique générale (1966).

Como explicam D’Ottavi e Frigeni (2023: 71),

A obra deve muito ao vigor lexicográfico de Algirdas Julien Greimas (1917-1992) e às pesquisas realizadas por seu grupo. Como Broden (2013, p. 8) conta, logo após a publicação do Dictionnaire de l’ancien français [Dicionário do francês antigo], em novembro de 1968, Greimas dedicou-se ao projeto de um segundo dicionário, reunindo uma equipe “que elabora um arquivo terminológico de semiótica, com vista à publicação de um Vocabulário semiótico”. J.-C. Coquet lidera um grupo de pesquisadores que faz um levantamento e uma primeira análise dos textos de Roland Barthes (1915-1980), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), do próprio Greimas e de Benveniste. O empreendimento é adiado e, finalmente, não se concretiza nessa configuração, mas os arquivos benvenistianos estão prontos: o trabalho resultante é apresentado como o primeiro resultado dessa iniciativa coletiva, que leva a marca greimasiana e exibe, assim, uma postura claramente semiótica.

Além do Le lexique, a terminologia de Benveniste é abordada em dois trabalhos de Mohammad Djafar Moïnfar. O primeiro, de 1975, é um exaustivo levantamento bibliográfico “que tem por objetivo estabelecer uma lista tão completa quanto possível” (Moïnfar, 1975:IX), conforme o seguinte plano: obras (classificadas em ordem cronológica), artigos (classificados cronologicamente e subclassificados segundo o assunto), índice de assuntos, resenhas e comunicações feitas na Sociedade Linguística de Paris. Pode-se considerar que há, nesse trabalho, uma primeira indicação sobre a terminologia de Benveniste, principalmente se considerarmos o “Índice de assuntos”. O segundo, de 1997, é um artigo especificamente voltado a avaliar a terminologia de Benveniste. Nele, Moïnfar (1997: 373, negritos nossos), a partir da análise do uso de termos por Benveniste em alguns textos, conclui que além do vocabulário comum e sem problemas em uso na linguística, os termos técnicos propriamente ditos utilizados por Benveniste são de quatro tipos.

1 – Os termos já existentes cujas definições são retomadas, esclarecidas e desenvolvidas, por exemplo: geminação, expressivo, anafórico, absolutivo, imperativo.
2 – Os termos já existentes em outros domínios além da linguística aos quais ele
atribui uma nova definição adaptada às suas necessidades, por exemplo: metamorfismo, conglomerado.
3 – Os neologismos criados por outros pesquisadores interessados nos problemas da linguagem, reapropriados por ele, por exemplo: performativo.
4 – Os neologismos criados por ele mesmo, por exemplo: delocutivo, sinapsia.

Entre os anos 1980 e início dos anos 2000, Claudine Normand, uma das principais
leitoras de Benveniste no mundo, publica uma série de artigos que, de uma maneira ou de outra, toca a questão terminológica em Benveniste; tais textos trazem uma abordagem investigativa que busca vislumbrar oscilações de sentido no tratamento conceitual e terminológico dado por Benveniste. São os artigos “Les termes de l’énonciation de Benveniste” (1986), “Constitution de la sémiologie chez Benveniste” (1989), “Émile Benveniste: quelle sémantique?” (1996) e “Sémiologie, sémiotique, sémantique: remarques sur l’emploi de ces termes par Émile Benveniste” (2001).

A terminologia de Benvenistee os limites de um guia conceitual

Apenas a título de exemplo, cabe lembrar que Normand conclui, relativamente a “sujeito”, que é possível dizer que o termo evoca uma “constelação” terminológica oriunda ou da tradição gramatical e psicológica (“sujeito” do verbo; “sujeito” sede de sentimentos etc.); ou de uso não teórico, mas com valor descritivo e/ou metafórico (“indivíduo”, “falante”, “ouvinte”, “locutor”, “subjetividade”, “intersubjetividade”); ou da proposta teórica stricto sensu do autor (termos teóricos como “pessoa”, “instância de discurso”, “realidade de discurso” etc.). Essa heterogeneidade já ilustra a complexidade que é abordar a terminologia benvenistiana.

Em 2007, Aya Ono publica La notion d’énonciation chez Émile Benveniste [A noção de enunciação em Émile Benveniste], que trata, entre outras questões, da problemática terminológica (“a noção”) ligada à formulação da ideia de “enunciação” no autor. Trata-se de um trabalho que expõe com rigor e complexidade uma infinidade de relações conceituais e noções associadas à enunciação na obra de Benveniste.

Em 2012, Valdir do Nascimento Flores, em “Sujet de l’énonciation et ébauche d’une réflexion sur la singularité enonciative” [Sujeito da enunciação e o esboço de uma reflexão sobre a singularidade enunciativa], procede a uma investigação terminológica na obra benvenistiana destacando, principalmente, as definições e as relações conceituais entre língua, linguagem, línguas, homem, locutor, sujeito, intersubjetividade, subjetividade e pessoa.

Todos esses trabalhos tratam, no contexto francófono, das dificuldades de abordagem da terminologia benvenistiana. No contexto brasileiro, Flores (2013a) dedica um estudo específico à problemática terminológica do autor no campo da enunciação (cf. “Flutuação terminológica na teoria enunciativa de Benveniste”) e conclui que é possível encontrar, no corpus textual da pesquisa recortado, usos terminológicos homonímicos, sinonímicos e polissêmicos (em um mesmo artigo de Benveniste ou em artigos distintos do corpus). Finalmente, há, ainda no Brasil, a terminologia presente no Dicionário de linguística da enunciação (cf. Flores et al., 2009).

A partir desse pequeno apanhado que fazemos acerca de estudos já realizados da terminologia de Benveniste, é fácil concluir que o tema exige ainda estudos aprofundados, em razão de uma característica da obra desse linguista: Benveniste faz parte de uma linhagem de grandes linguistas, cujas pesquisas e preocupações não se limitam nem a um aspecto linguístico (ou sintaxe, ou fonologia, ou léxico etc.), nem mesmo ao campo disciplinar da linguística, uma vez que há estudos seus que dialogam com várias áreas das ciências humanas e sociais. Ora, se, por um lado, isso é fator de reconhecimento da potencialidade desse pensamento, por outro lado, impõe dificuldades aos que buscam se aprofundar no estudo da teoria.

É em função disso que decidimos trazer ao público brasileiro este Guia conceitual da linguística de Benveniste. Ele pretende ser uma espécie de ferramenta de leitura da obra de Benveniste. Falemos um pouco sobre este Guia.

O que é um guia conceitual? Em resposta, cabe começar dizendo – num gesto de inversão do que se espera de uma definição – o que entendemos estar fora da ideia de um guia conceitual: ele não é nem um dicionário especializado, nem um glossário, nem um léxico especializado, nem um vocabulário, nem uma enciclopédia. E a diferença diz respeito a um ponto específico: esses “produtos” são obtidos como “a fase final de um processo, geralmente longo, integrado por uma sequência de pesquisa e de trabalho” (Krieger; Finatto, 2004: 129), o que inclui reconhecimento terminológico, organização de verbetes, construção de base de dados etc. Um guia conceitual, tal como o entendemos, é algo de natureza mais simples e não vai além de um conjunto de instruções para o entendimento da teoria em questão.

Dito de outro modo, entendemos um guia conceitual como uma espécie de passo a passo que explica conceitos fundamentais da linguística de Benveniste, sem se concentrar em detalhes técnicos específicos de elaboração terminológica ou de tratamento terminográfico. A ideia é fornecer ao leitor iniciante de Benveniste uma compreensão abrangente de suas principais noções, um roteiro de leitura guiada da obra do autor e, finalmente, um percurso pela fortuna crítica (com ênfase em material publicado em português), produzida em torno da linguística benvenistiana.
Em síntese, esperamos ter produzido uma ferramenta que permite o conhecimento e a compreensão de tópicos essenciais dessa linguística, o que pode fornecer uma visão geral de seus termos, conceitos e ideias principais a eles relacionadas.

Nesse sentido, procuramos mapear – com base na terminologia já estabelecida de Benveniste – os termos por nós considerados essenciais para a compreensão de sua teoria linguística. Para tanto, procedemos da seguinte maneira: reunimos os termos presentes no Le lexique (Coquet; Derycke, 1971, 1972), nos índices remissivos de Problemas de linguística geral I e II e no Dicionário de linguística da enunciação (Flores et al., 2009). Desse conjunto, derivamos a lista de termos que constitui este Guia conceitual. Em seguida, estabelecemos um roteiro que estrutura de maneira idêntica a organização de cada capítulo. Observe-se, no quadro a seguir, um exemplo com “Instância de discurso”:

A terminologia de Benvenistee os limites de um guia conceitual

Em (1), incluíram-se definições conceituais coletadas na obra do linguista ou, na ausência delas, definições construídas pelos autores dos capítulos; em (2), buscou-se apresentar um mapa, o mais detalhado possível, para a compreensão do surgimento e do desenvolvimento do conceito/termo no interior da obra de Benveniste (fez-se uso, aqui, apenas de fontes primárias; o uso de literatura secundária ficou restrito ao item (4)); em (3), apresentou-se um exemplo de estudo de Benveniste sobre o assunto em tela; em (4) indicou-se, com breves comentários, um conjunto de leituras que podem auxiliar no aprofundamento do assunto tratado no capítulo; em (5), por fim, apresentou-se uma espécie de mapa de inter-relações possíveis entre termos e noções da linguística de Benveniste.

A lista de termos, como o leitor verá, abrange várias faces da linguística benvenistiana: a linguística geral, os estudos comparados, os estudos de interface com as ciências humanas e sociais, os estudos enunciativos, os estudos voltados à poesia e à escrita. Foram utilizadas como fontes as seguintes obras:

a. Baudelaire;
b. La traduction, la langue et l’intteligence;
c. Noms d’agent et noms d’action en indo-européen;
d. O vocabulário das instituições indo-europeias I e II;
e. Origines de la formation des noms en indo-européen;
f. Problemas de linguística geral I e II;
g. Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969).

O conjunto de textos que apresentamos ao leitor brasileiro não esgota as possibilidades de leitura da linguística de Benveniste; isso seria impossível frente à dimensão de uma tal obra: 18 livros, 291 artigos, 300 resenhas, 34 comunicações – cf. Moïnfar (1975). Essa extensa obra de Benveniste permite-nos afirmar que este Guia oferece uma reflexão adicional: frequentemente, os leitores de Benveniste começam seus estudos vendo-o apenas como o linguista da enunciação, por ter explorado a relação entre o falante, o ouvinte, a linguagem, destacando a enunciação como um ato individual de uso da linguagem, por exemplo. Se considerarmos apenas essa verdade, estaremos reduzindo a obra de Benveniste a um único aspecto, ao da enunciação. Ele, porém, trouxe contribuições fundamentais aos estudos da linguística e da teoria da linguagem. Podemos afirmar com segurança que Benveniste é um linguista que investiga as línguas e temas relacionados à linguagem, com um rigor teórico que lhe é singular, o que lhe confere o mérito de ser um teórico da linguagem.

Independentemente de qual abordagem nos debruçamos, estaremos diante de um grande teórico que inspirou muitos pesquisadores a explorarem a linguagem além das estruturas formais, considerando questões outras importantes a uma linguística geral. Émile Benveniste é um dos grandes teóricos da linguagem do
século XX, cujas ideias continuam a influenciar e instigar a pesquisa linguística
contemporânea. Além de linguista, Benveniste tinha interesses peculiares, o que
lhe permitiu abordar a linguagem de uma perspectiva interdisciplinar.

A terminologia de Benvenistee os limites de um guia conceitual

Este Guia intenta orientar o leitor na iniciação de estudo dessa obra; se fomos, ao menos parcialmente, bem-sucedidos nessa empreitada, já nos consideramos vitoriosos na intenção de tornar cada vez mais acessível o pensamento de um autor cuja envergadura da obra e alcance das reflexões fazem falta no cenário da linguística atual.


Organizadores: Claudia Toldo e Valdir do Nascimento Flores.

Autores: Alena CiullaCarmem Luci da Costa SilvaCarolina KnackCatiúcia Carniel GomesCélia Della Méa, Claudia Toldo, Daniel Costa da SilvaElisa Marchioro StumpfFábio AresiFilipe Almeida GomesGabriela BarbozaHeloisa Monteiro RosárioIsabela Rêgo BarrosJosé Temístocles Ferreira JúniorLarissa Colombo FreislebenMárcia BoabaidMarlete Sandra DiedrichPaula Ávila NunesRenata Trindade SeveroSabrina VierSara Luiza HoffSilvana Silva e Valdir do Nascimento Flores.

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