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A sociedade perfeita | Lançamento

A antessala da sociedade perfeita: a Europa entre os séculos XIV e XVI

“De quem é homem?” “Sou servidor, porém não tenho senhor”. Diante dessa resposta inesperada, o interlocutor exclama: “Como pode existir isso?”. Essa passagem é de uma peça de teatro, Mayor of Queenborough, escrita por Thomas Middleton (1580-1627), dramaturgo inglês de fins do século XVI. Mais ou menos na mesma época, cerca de 1600, outro autor rascunhava a peça Troilio e Créssida, sublinhando que, abalada a hierarquia social, e com ela suprimidos os direitos de berço e nascença da nobreza, inevitavelmente “catástrofes, horrores, abalariam a calma dos Estados”. O segundo autor é um pouco mais conhecido por suas peças, entre tantas outras, como Romeu e Julieta e Sonhos de uma noite de verão. Trata-se de William Shakespeare (1564-1616). Estamos diante de dois representantes da Europa de fins do Renascimento, cujas encenações encantavam plateias de diferentes segmentos sociais, inclusive plebeus. Ou seja, homens e mulheres sem berço e muitos dependentes de senhores.

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Passando para os tratadistas cristãos de diferentes matizes dessa época, encontraremos preocupações semelhantes das dos trovadores e dramaturgos. Tanto os tratadistas católicos quanto os luteranos e calvinistas consideravam, para a manutenção da ordem pública e o sossego das gentes, a importância de uma hierarquia zelosa de suas diferenças. Semelhante preocupação pode ser encontrada em autores menos cristãos como Maquiavel (1469-1527) e mais cristãos como o autor de A utopia, Thomas Morus (1472-1538), cuja sociedade “igualitária” dos seus sonhos não abria mão da escravidão.

Para quase todos os adeptos da alta filosofia, independentemente de sua orientação religiosa e política, a ordem social devia ser resguardada. A preocupação com a hierarquia social e a permanência das desigualdades estava presente mesmo entre os que defendiam a democracia e o domínio das assembleias de cidadãos na direção nos negócios da república. Por exemplo, a corrente do pensamento político dos denominados republicanos italianos, presente nas cidades da península itálica dos Quinhentos, defendia que uma população só usufruía a liberdade ao exercer o mando político, não o delegando a ninguém. Provavelmente os mesmos republicanos, na categoria de população, excluíam naturalmente as mulheres, os criados e os lavradores sem terras. Algo semelhante pode ser visto no Pacto do povo, escrito pelos niveladores radicais ingleses da Revolução Puritana de 1640: para eles, mulheres, criados, lavradores, miseráveis etc. não faziam parte do povo.

A insistência com a desigualdade social deixa de ser uma surpresa caso olhemos ao rés do chão das sociedades da Europa da época moderna. Em fins do século XVI, o continente possuía cerca de 105 milhões de almas, o número de cidades com mais de 100 mil habitantes em 1600, com boa vontade, chegava a 12, entre elas: Paris, Londres, Veneza, Amsterdã, Antuérpia, Sevilha e Lisboa. Tratava-se de um continente ainda esmagadoramente rural. O ritmo das colheitas, boas ou más, determinava o ritmo dos negócios e a qualidade de vida nas cidades. As cidades, na verdade, eram apêndices do campo. Uma má colheita para os burgos significava a fome e, quase inevitavelmente, epidemias e mortes. Daí não ser raro nas pinturas da época, mesmo nas dos ricos Países Baixos, a insistência com o tema da morte. Como é o caso do Triunfo da morte, de 1562, pintado por Pieter Bruegel, o velho.

Apesar de, na época, a nobreza partilhar sua autoridade política com monarquias territoriais como as da Inglaterra, França e Espanha, a esmagadora maioria dos europeus vivia em aldeias dominadas por casas aristocráticas. Por seu turno, a paisagem rural estava longe de ser uniforme. Voltaremos a esses temas com mais cuidado adiante. Porém, desde já, é importante sublinhar a importância dessa Europa rural e hierarquizada, pois é ela que vai conquistar a América lusa e aí estabelecer uma sociedade de Antigo Regime.

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João Fragoso é professor titular de História, por concurso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 2005 e no magistério superior federal desde 1986. Pesquisador 1B CNPq. Entre seus prêmios: Arquivo Nacional de Pesquisa (1º. Lugar – 1991) concedido ao livro Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830 (1998); Comenda da Ordem do Mérito Científico – Presidência da República (2010); Jabuti – Ciências Sociais (1º. Lugar – 2015), com Maria de Fátima Gouvêa, pela coleção O Brasil Colonial (2014).

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