Denomina-se Revolução de 1930 o movimento armado que depôs o então presidente da República, Washington Luiz Pereira de Souza, pouco antes do término do seu mandato. A chefia civil coube a Getúlio Dornelles Vargas e a militar ao tenente coronel Pedro Aurélio de Góis Monteiro. O objetivo era impedir a posse de Júlio Prestes e Vital Soares, candidatos situacionistas apoiados pelo Partido Republicano Paulista (PRP) e que haviam derrotado a chapa Getúlio Vargas e João Pessoa nas eleições presidenciais de março de 1930, sustentada pela Aliança Liberal, coligação oposicionista liderada por políticos de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. A conspiração foi deflagrada a 3 de outubro e, exatamente um mês depois, Getúlio Vargas assumiu a chefia do Governo Provisório.
O episódio tornou-se marco periodizador da história republicana brasileira, que passou a ser dividida entre a República Velha, denominação pejorativa, forjada e imposta pelos instituidores da República Nova, que se julgavam portadores de um novo tempo. Os protagonistas esforçaram-se por ampliar o significado da Revolução, num investimento que visava ultrapassar a mera disputa pelo poder político entre grupos oligárquicos. Em discurso de 23 de fevereiro de 1931, Vargas ressaltava:
Precisamos convir que a obra da Revolução, além de ser vasta obra de transformação social, política e econômica, é, também, nacionalista no bom sentido do termo. Não percebem esses efeitos profundos do movimento vitorioso somente os espíritos superficiais ou as consciências obcecadas. O ritmo revolucionário ninguém poderá modificá-lo antes que se encerre o ciclo das aspirações brasileiras não satisfeitas […].
Portanto, longe de se limitar à consecução do objetivo imediato – a resolução da crise sucessória que levou à tomada do poder –, à nova ordem se autoimpunha a reformulação completa do país, ancorada num discurso de ruptura com a experiência anterior. Não faltam exemplos de análises e depoimentos, produzidos no calor dos acontecimentos, que louvavam as renovações em curso. E, de fato, tornou-se frequente a associação entre o regime instalado em 1930 e a ideia de Brasil moderno. A longa duração do primeiro governo Vargas, que se estendeu até 1945 e comportou um período claramente ditatorial a partir de 1937, quando da implantação do Estado Novo, colaborou para fundir o acontecimento em si e o processo que então se desencadeou. Ainda que as interpretações historiográficas sobre a Revolução sejam marcadas pela diversidade e heterogeneidade, parece certo que a data integra o imaginário político nacional.
Na contramão da decantada ruptura que os personagens do tempo procuraram estabelecer, pesquisas acadêmicas enfatizaram a continuidade entre a velha e a nova ordem no que tange ao controle oligárquico do poder político. Nas palavras da historiadora Aspásia Camargo:
as renovações introduzidas atestam um inegável surto de reformismo – uma aceleração do tempo histórico que apressa transformações já iniciadas e afrouxa as contenções a que vinham sendo submetidas. À elite que ascende ao poder caberá, portanto, mais do que subverter tendências, precipitar e reforçar processos já desencadeados, que esbarravam, sem dúvida, nos rígidos limites impostos por um modelo político formalmente baseado em uma confederação de estados.
A ampliação do campo de ação do Estado e de sua burocracia, marca do regime instaurado em 1930, constituiu-se, como assinalou o pesquisador Luciano Martins, numa possibilidade de incorporar seletivamente novos atores sociais à cena política, a exemplo do que ocorreu com os tenentes ou com a liderança sindical forjada a partir da legislação trabalhista. É certo que não se tratava de participação no sentido reivindicado anteriormente, que previa a efetiva inclusão no sistema político, mas de absorção em grupos técnicos e, no caso específico da Constituinte de 1934, dentro da representação classista, ao gosto do corporativismo.
Tais perspectivas analíticas distanciam-se de interpretações que tomavam a ordem inaugurada em 1930 como uma revolução democrática burguesa, na qual um Brasil pré-capitalista, semifeudal, representado pelas elites agroexportadoras aliadas ao imperialismo, defrontou-se com a burguesia nacional, núcleo dinâmico da economia, voltada para o mercado interno e interessada em implantar o modo de produção capitalista, tal como sustentava a análise de Nelson Werneck Sodré já na década de 1940.
Essa interpretação dualista, duramente questionada por Caio Prado Júnior, encontrou novo opositor na leitura que Boris Fausto realizou acerca do movimento. Em obra publicada em 1970, o autor explicitou seus pressupostos: “inexistência de contradições antagônicas entre setor capitalista exportador e de mercado interno; impossibilidade de reduzir uma instituição como o exército às classes médias; necessidade de relativizar a noção de que o setor agrário exportador está associado ao imperialismo”. Defendeu, em consonância com o trabalho de Francisco Weffort, a ideia de que nenhuma classe ou facção apresentava-se suficientemente forte para apropriar-se do Estado e instituir as bases de sua legitimidade, daí o estabelecimento de um “Estado de Compromis-so”, que atuaria como árbitro dos conflitos, interpretação que teve (e segue tendo) larga aceitação historiográfica.
Luiz Werneck Vianna, por seu lado, valeu-se conceitualmente do caminho prussiano ou “revolução pelo alto” para caracterizar o Estado a partir de 1930. De acordo com o autor, “ao remover o Estado Liberal, a coligação aliancista cria as bases para promover ‘de cima’ o desenvolvimento das atividades do conjunto das classes dominantes, em moldes especificamente burgueses”. No modelo adotado, a revolução burguesa realiza-se independentemente da hegemonia burguesa, como frisou Vianna: “a modernização como ‘revolução pelo alto’ não se associa à ideia de que tal processo tenha levado a burguesia industrial ao poder político, e sim que os interesses específicos da indústria tenham encontra do apoio e estímulo eficaz na nova configuração estatal”.
Crítica radical à construção da memória histórica em torno de 1930 foi levada a cabo por Edgar de Decca, que submeteu à análise tanto a versão tecida pelos vitoriosos de 1930 e o silêncio imposto a outras possibilidades políticas não concretizadas quanto as representações do pensamento político revolucionário de que a historiografia se valeu para construir seus modelos explicativos acerca do episódio. No primeiro caso, trata-se de uma tentativa de encarar o período a partir da perspectiva da revolução democrática burguesa tal como concebida pelo Bloco Operário e Camponês em 1928, que, segundo o autor, foi capaz de elaborar e enunciar um programa revolucionário alternativo ao vitorioso. No que tange à historiografia, de Decca questionou os modelos interpretativos construídos a partir de imagens estabelecidas no exercício da dominação política por aqueles que tiveram a possibilidade de impor sua versão, assumidas como monolíticas e unitárias.
O debate em torno do movimento iniciado em outubro de 1930 continua aberto e segue desafiando historiadores e cientistas políticos.
Por Tania Regina de Luca – doutora em História Social, professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp/Assis) – no livro Dicionário de Datas da História do Brasil, publicado pela Editora Contexto