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A Ford e o Brasil | Jaime Pinsky

Não há dúvida, o mundo encolheu. Viagens de Portugal ao Brasil eram feitas apenas por mar, até pouco tempo atrás. Duravam semanas no século XVI e muitos dias no século XX. Hoje, por via aérea, elas levam poucas horas. E as comunicações, então! Muitos leitores haverão de se lembrar da dificuldade de se fazer ligações telefônicas para uma cidade próxima, um interurbano, como eram respeitosamente chamadas. Era algo bem diferente do que fazemos hoje para nos comunicar, quando basta teclar o celular com um ou dois dedinhos.

É verdade que o encolhimento do mundo (seja pela facilidade de locomoção, seja pela rapidez nas comunicações) tem cobrado um preço alto: a produção de mercadorias baratas em alguns países tem desmontado indústrias em outros, provocando desemprego em regiões até pouco tempo atrás prósperas, como Detroit, nos EUA, ou o ABC, no Brasil. Mas não se pode negar o aperfeiçoamento de processos produtivos, uma maior eficácia e a automação que está substituindo músculos por cérebros. 

Com a globalização, o capital (que sempre circulou, mesmo em épocas em que não era tão venerado como agora) passou a transpor fronteiras com mais agilidade. Com um simples celular as pessoas podem aplicar seu dinheiro em bolsas do mundo todo. Expectativas de lucro fazem ações chegarem a valores altíssimos. Resultados abaixo do esperado podem empobrecer investidores inexperientes. Há uma globalização de comportamento econômico,  diferentes regiões do planeta tendem a seguir um padrão global. Os hábitos das pessoas ligadas aos assuntos do dinheiro – e quais assuntos não o são? – acompanham o comportamento do capital e se internacionalizam. São os mesmos tecidos, é o mesmo tipo de gravata, a marca de calçado. Ternos bem cortados e gravatas discretas para os homens, saias justas (pero no mucho) e blusas com cores “do ano” para as mulheres acompanham o linguajar, sempre carregado de palavras em inglês. O padrão globalizado não admite idiossincrasias locais, estas acabam perdendo espaço a favor de códigos de comportamento internacionais, que circulam com a mesma rapidez com que circula o capital.  Nos negócios e nos costumes não se admitem desvios. A lógica da produção, circulação e consumo capitalistas extrapola sua área e tende a se expandir para outras (que não a produtiva). O mundo do esporte, da cultura, da educação, do turismo e até das relações pessoais é analisado a partir de uma lógica oriunda na economia global. Produtividade, racionalidade do trabalho, eficiência, protocolos etc, hoje fazem parte do vocabulário e da prática social de todos, não apenas de pessoas em escritórios e fábricas. Os exemplos saltam aos olhos de quem quer enxergar.

Ao lado dos que têm o inglês como sua língua materna, centenas de milhões de cidadãos mundiais adotaram essa língua (ou um arremedo dela) como código internacional de comunicação. Mesmo pessoas que possuem línguas aparentadas (como brasileiros e argentinos, ou poloneses e russos), preferem usar  o inglês para se comunicar. Afinal, é nessa língua que se fazem negócios, é nela que são escritos os artigos científicos, é com ela que diplomatas trocam gentilezas. Ou esgrimam.

Comunicações mais rápidas, viagens mais frequentes, língua comum, maior contato entre cidadãos de diferentes países, práticas semelhantes em empresas e no ensino técnico – tudo isso está tendendo a diminuir as idiossincrasias locais a favor de protocolos globais, seja no que se refere à vestimenta, ao respeito a horários, assim como a simples códigos de comportamento. Espanhóis e argentinos, ao contrário de seus hábitos locais, estão começando o jantar antes das 10 da noite; americanos já estão abrindo mão de seus breakfeast engordurados, regados a café aguado e insossos cubinhos de flocos; alguns estão até aprendendo a almoçar sentados, utilizando talheres, em vez de engolir em minuto e meio um sanduíche comprado de um ambulante e passado de mão em mão sem a mediação de um guardanapo! Brasileiros se deram conta de que não fica bem oferecer em garrafa térmica uma horrível bebida escura e amarga, com café moído de origem duvidosa. Aos poucos também nos demos conta de que a festejada cachaça não passa de bebida ordinária (não chega aos pés do rum cubano) e que um jantar regado a chardonnay fica bem mais adequado do que tentar enfiar goela abaixo do pobre conviva nossa limonada alcoólica chamada caipirinha.

Plantar um pé de alface em vaso para consumo próprio pode ser uma declaração de intenções, mas não é uma atitude política, porque inconsequente. O mundo está globalizado, e isto é irreversível. Contudo, vemos gente que se apresenta como de esquerda, progressistas,  chorando pela saída da Ford, uma montadora americana. Sim, lamentamos todos a perda de locais de trabalho, mas de que tipo de indústria estamos falando? Sabemos que carros movidos a combustível fóssil estão condenados.  Por que não aproveitar e estudar seriamente o desenvolvimento de veículos para o futuro, como carros movidos a energia renovável? Carros autônomos. Melhor ainda, que tal dotar as cidades brasileiras de transporte coletivo de boa qualidade, como muitas cidades europeias já têm? Que tal repensar a organização espacial urbana, de forma a permitir que mais gente more perto de seus locais de trabalho?

O tempo das caravelas já passou. Que tal olhar para frente?

Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.