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A ciência tem todas as respostas ? | Lançamento

“Posso perguntar uma coisa?”, perguntou um homem, quando soube que eu era física. “É sobre mecânica quântica”, acrescentou timidamente. Eu estava a ponto de debater o postulado da medida e as armadilhas do emaranhamento entre múltiplas partículas, mas não estava preparada para a pergunta que ele fez: “Um xamã me disse que a minha avó ainda está viva. Por causa da mecânica quântica. Ela só não está viva aqui e agora. Isso é certo?”.

Como você pode ver, ainda estou pensando sobre isso. Uma resposta rápida seria que isso não está totalmente errado. A resposta longa aparecerá no capítulo “O passado ainda existe?”, mas antes de entrar na mecânica quântica de avós falecidas, quero contar por que estou escrevendo este livro.

A ciência tem todas as respostas ? | Lançamento
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Desde que comecei a trabalhar com divulgação científica, há mais de uma década, notei que físicos são realmente bons em responder perguntas, mas muito ruins para explicar por que as pessoas deveriam se importar com suas respostas. Em algumas áreas de pesquisa, o propósito de um estudo é evidente: o de chegar a um produto comercializável no final. No entanto, nos fundamentos da física, área em que concentro meu trabalho, o principal produto é o conhecimento. Nós, eu e meus colegas, muito frequentemente apresentamos esse conhecimento de uma maneira tão abstrata que ninguém entende por que afinal de contas pesquisamos isso.

Não que isso seja exclusivo da física. A desconexão entre especialistas e não especialistas é tão disseminada que o sociólogo Steve Fuller afirma que acadêmicos usam uma terminologia incompreensível para manter os insights escassos e por isso mais valiosos. É como se queixou o jornalista americano e vencedor do prêmio Pulitzer, Nicholas Kristof: acadêmicos codificam “conhecimento em uma prosa empolada” e “esse jargão se esconde às vezes em periódicos obscuros como uma dupla proteção contra o consumo público”.

O caso aqui é que o público não liga muito se a mecânica quântica é previsível, ele quer saber se seu próprio comportamento é previsível. Ele não se importa muito se os buracos negros destroem informação, ele quer saber o que acontecerá com a informação coletada pela humanidade. Tampouco se importa muito se os filamentos galácticos se assemelham às redes de neurônios, ele quer saber se o universo pode pensar. O público é o público, quem diria, não?

É claro que eu também quero saber essas coisas. Ao longo da minha trajetória acadêmica, no entanto, aprendi a evitar essas questões, que dirá respondê-las. Afinal, eu sou apenas uma física e não sou competente para falar sobre a consciência e comportamento humanos, entre outras coisas.

Mesmo assim, a pergunta do jovem me lembrou que físicos conhecem sim algumas coisas, talvez não sobre a consciência em si, mas sobre as leis da física, que tudo no universo, incluindo a minha e a sua avó, precisam respeitar. Nem todas as ideias sobre a vida e morte e a origem da existência humana são compatíveis com os fundamentos da física. Esse é o conhecimento que não deveríamos esconder em periódicos obscuros usando uma prosa incompreensível.

Sim, vale a pena compartilhar esse conhecimento, mas não é apenas isso. Mantê-los para nós mesmos, os acadêmicos, traz consequências. Se os físicos não se adiantam para explicar o que eles têm a dizer sobre a condição humana, outros agarrarão a oportunidade e abusarão da nossa terminologia enigmática para promover pseudociência. Não é mera coincidência que o emaranhamento quântico e a energia do vácuo são as explanações favoritas de terapeutas alternativos, mídias espirituais e vendedores de óleo de cobra. A não ser que você tenha um doutorado, é difícil diferenciar nosso blábláblá dos outros.

Minha intenção aqui, no entanto, não é apenas a de expor a pseudociência pelo que ela é. Também quero mostrar que algumas ideias espirituais são perfeitamente compatíveis com a física moderna, sendo que outras são até amparadas por ela. E por que não? Não é tão surpreendente que os físicos tenham algo a dizer sobre nossa conexão com o universo. Ciência e religião têm as mesmas raízes e, ainda hoje em dia, enfrentam algumas questões semelhantes: de onde viemos? Para onde vamos? O quanto podemos conhecer?

Os físicos aprenderam muito no século passado sobre essas questões. O progresso deles deixa claro que os limites da ciência não são fixos. Os limites se movem à medida que aprendemos mais sobre o nosso mundo. Ao mesmo tempo, sabemos hoje em dia que algumas explicações baseadas em crenças, que já ajudaram a dar sentido às coisas e deram algum conforto, estão erradas. A ideia, por exemplo, de que certos objetos estão vivos porque conteriam uma substância especial (o “élan vital” de Henri Bergson) era inteiramente compatível com os fatos científicos de duzentos anos atrás. Mas não é mais assim.

Nos fundamentos da física atuais lidamos com as leis da natureza que operam no nível mais fundamental. Nesse caso também, o conhecimento adquirido nos últimos 100 anos está substituindo antigas explicações baseadas em crenças. Uma dessas explicações antigas dizia que a consciência requer algo mais do que a interação entre muitas partículas, basicamente algum tipo de pó mágico, que dota certos objetos com propriedades especiais. Da mesma forma que o élan vital, essa é uma ideia ultrapassada e inútil, que não explica nada. Eu vou focar nisso no capítulo “Somos apenas sacolas cheias de átomos?” e no capítulo “A física descartou o livre-arbítrio?” discutirei as consequências que isso traz para a existência do livre-arbítrio. A crença de que o universo é adaptado especialmente para a presença da vida é outra ideia pronta para a aposentadoria, como vou apresentar no capítulo “O universo foi feito para nós?”.

No entanto, a demarcação dos limites atuais da ciência não apenas destrói ilusões, como também nos ajuda a reconhecer quais crenças ainda são compatíveis com os fatos científicos. Tais crenças talvez não devessem ser chamadas de não científicas, melhor seria chamá-las de acientíficas, como Tim Palmer (de quem falarei mais para frente) observou adequadamente: a ciência nada diz sobre elas. Uma dessas crenças é sobre a origem do universo. Não só não sabemos explicá-la hoje em dia, como também é questionável se algum dia seremos capazes de fazê-lo. É possivelmente um dos caminhos pelos quais a ciência é fundamentalmente limitada. Pelo menos é nisso que acredito hoje em dia. A ideia de que o universo em si é consciente, para minha surpresa, é difícil de ser descartada completamente (capítulo “O universo pensa?”). E os jurados ainda confabulam se o comportamento humano é previsível ou não (capítulo “Os humanos são previsíveis?”).

Este livro trata, em resumo, das grandes questões que a física moderna levanta: se o presente momento difere do passado; a ideia de que cada partícula elementar poderia conter um universo; se as leis da natureza determinam as nossas decisões. Eu não posso, obviamente, oferecer respostas definitivas. Mas quero contar a você o quanto os cientistas sabem hoje em dia e onde a ciência só especula.

Na maior parte das vezes, vou me ater a teorias estabelecidas da natureza, que são apoiadas pelas evidências. Dessa forma, tudo o que eu vou dizer deveria vir com o preâmbulo “na medida do que conhecemos atualmente”, o que significa que o progresso científico no futuro pode levar a uma revisão das ideias. Em alguns casos a resposta a uma pergunta depende de propriedades das leis da natureza que não entendemos ainda de maneira fundamental, tais como as medidas quânticas ou a natureza das singularidades do espaço-tempo. Nesses casos apontarei como pesquisas futuras poderiam ajudar a responder as perguntas. Não quero também que você leia apenas as minhas opiniões, por isso adicionei algumas entrevistas. No final do livro, você também encontrará um breve glossário com definições dos termos técnicos mais importantes. Esses termos estão marcados em negrito quando aparecem pela primeira vez.

A ciência tem todas as respostas? é para quem não se esqueceu de formular as grandes questões e não tem medo das respostas.


Sabine Hossenfelder é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados de Frankfurt, na Alemanha, e autora de mais de oitenta artigos de pesquisa sobre temas fundamentais da Física. Ela atua como divulgadora científica e é a criadora do canal do YouTube “Science without the Gobbledygook”. Seus textos foram publicados no New Scientist, Scientific American, The New York Times e The Guardian. Seu primeiro livro, Lost in Math: How Beauty Leads Physics Astray, foi publicado em 2018.

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