Há oitenta anos, no dia 19 de abril de 1943, o general alemão da SS. Jürgen Stroop entrou com suas tropas no gueto de Varsóvia, com o objetivo de cumprir as ordens dadas pessoalmente por Hitler e erradicar todos os judeus da cidade. No dia 16 de maio, o general comunicava para um Hitler exultante e para um mundo indiferente que “não há mais judeus em Varsóvia”. Ao que se sabe, o único protesto importante contra o fim do judaísmo polonês foi o suicídio solitário do líder judeu polonês no exílio (em Londres) Szmul Zygelboim que em tocante carta dizia: “Quero registrar meu protesto final contra a passividade com a qual o mundo está vendo e permitindo o extermínio do povo judeu.”
A presença judaica na Polônia data de muitos séculos, pelo menos desde o século XIII. Convidados pelos príncipes e protegidos pelos reis, os judeus, elementos urbanos e modernizantes numa sociedade feudal, tinham a vantagem de ter prática em atividades comerciais, financeiras e administrativas que haviam desenvolvido na Europa Ocidental. Durante vários séculos a vida dos judeus poloneses tinha sido razoavelmente tranquila. De fato, foi na Polônia que o ídiche alcançaria o status de língua literária, forma de expressão de gênios como Sholem Aleichem e de prêmios Nobel como Isaac Bashevis Singer. Foi do judaísmo que se organiza na Polônia e em países em sua volta, como a Rússia, a Lituânia, que aparecem revolucionários e pesquisadores de alma, santos e guerreiros e uma cultura que desenvolveu formas de expressão como o teatro, o cinema, a música e a pintura que contribuíram de forma expressiva para o patrimônio cultural da humanidade. Entre filhos diretos e indiretos do judaísmo de cultura iídiche, além de nossos grandes escritores e homens de teatro, gostaria de lembrar os grandes músicos (descendentes dos conjuntos musicais do shtetl), dos cineastas (que praticamente criaram a indústria cinematográfica norte-americana), dos políticos que ajudaram a lançar as bases do socialismo, tentando a transposição de um socialismo utópico para um socialismo científico e tantos outros.
Mas esta cultura e seus portadores foram condenados à morte pelo nazismo.
Quando os nazistas conquistaram Varsóvia, em 1939, lá viviam 360 mil judeus, algo como 30% da população total da cidade. Poucos fugiram com a chegada dos alemães, não acreditavam na “solução final” para os judeus que Hitler tinha prometido tantas vezes. Deveriam ter acreditado, pois já no ano seguinte, em 1940, os alemães mandam construir um muro de 16 quilômetros de comprimento e três metros de altura dentro do qual todos os judeus deviam ficar confinados. Já eram nessa época cerca de 500 mil, graças aos deportados de pequenas cidades para lá enviados, todos submetidos (segundo estatísticas dos próprios alemães) a um regime de 184 calorias diárias, em média. As mortes, milhares por semana, davam-se por inanição. Mas isso parecia não ser o bastante para os nazistas.
Em 1942, começa a funcionar o primeiro campo de extermínio (não confundir com os campos de concentração) e para lá iam sendo levados os habitantes do gueto, começando pelos doentes, os velhos e os mendigos. O inacreditável estava se tornando verdade, o fim parecia próximo. Para todos.
No início de 1943 só havia no gueto algo como 40 ou 50 mil judeus vivos, os outros tinham morrido ou sido transferidos para campos de extermínio. Já não se vislumbrava esperança de ajuda externa (Israel ainda não existia e, ao contrário da visão preconceituosa os judeus nunca foram muito influentes no mundo). Só então a comunidade aceitou os argumentos de um jovem combativo, Mordechai Anilevich e sob sua liderança decidiu resistir. Assim, quando o general Stroop atacou o gueto com tanques, gases, lança-chamas e armas pesadas, encontrou não um rebanho de carneiros prontos para o matadouro, mas um grupo de homens e mulheres dispostos a vender sua vida com dignidade e, se possível, com o sangue dos inimigos.
A resistência, desesperada, durou mais de vinte dias. Mais de vinte mil judeus foram mortos à bala ou pela ação de gases e lança-chamas, ou ainda esmagados pelos escombros. Outro tanto foi aprisionado e morreu em campos de extermínio. Uns poucos conseguiram escapar, para contar a história e nos fazer lembrar quão pequenos os homens podem ser, mesmo que aparentemente cultos e sofisticados como os alemães e quão imensos podemos ser quando assumimos integralmente e com coragem nossa dimensão humana.
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.