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Brincando de Deus | Lançamento

Mineração de ossos

Em Yukon, no Canadá, leva menos de uma hora para ir, numa caminhonete com tração nas quatro rodas, da cafeteria da Front Street, em Dawson City, até a última era do gelo. Localizada a cerca de 500 quilômetros a noroeste de Whitehorse, Dawson City é uma rústica cidade do norte, com estradas de terra, calçadas de madeira, bares com portas tipo faroeste e prédios construídos em terrenos instáveis, inclinados pelo derretimento do solo abaixo deles. Hoje, o turismo é a principal atividade econômica em Dawson City. Mas nem sempre foi assim. Desde a descoberta de ouro em 1896, estima-se que 15 milhões de onças troy* (mais de 460.000 quilos) foram extraídas do extenso sistema fluvial e de riachos próximos da região de Klondike.

Leia um trecho aqui

O ouro, no entanto, não é a única mercadoria preciosa desenterrada pelos mineiros de Klondike. A cada ano, milhares de fósseis da era do gelo surgem no seu solo congelado, entre eles restos de mamutes, mastodontes, bisões, cavalos, pinheiros e salgueiros, esquilos terrestres, lobos, camelos, leões, roedores e ursos. São gravetos, sementes, ossos, dentes e, às vezes, corpos mumificados inteiros de animais e plantas que, em algum momento, viveram em Klondike durante os últimos milhões de anos.

Desde o início da corrida do ouro, os cientistas coletam e examinam os fósseis de Klondike, esperando usá-los para reconstituir o clima e as comunidades das eras glaciais recentes. Hoje esses fósseis são um dos pilares da minha própria pesquisa, e tento passar pelo menos algumas semanas em Klondike todo verão. Até já sei apontar quais das estradas poeirentas de Klondike são mais propensas para escavação, quais riachos cortam os solos mais produtivos (para ossos) e quais camadas de cinzas vulcânicas podem nos dizer a idade de um determinado fóssil. Mas num dia quente de verão de 2001, quando estive nas minas pela primeira vez, ainda não sabia nada disso.

Junto com dois colegas, Duane Froese e Grant Zazula, saímos de Dawson City para o Klondike. Na época, éramos estudantes de pós-graduação e as nossas pesquisas se baseavam em dados da região, mas eu era a única que nunca tinha ido às minas. Estávamos em Dawson City para uma conferência, o que significava aprender sobre ciência durante o dia e explorar a vida noturna da cidade assim que as discussões terminavam. Na noite anterior, estávamos num bar que os locais chamam de “O Poço”, quando encontramos um amigo de Duane que trabalhava nas minas. Depois de várias batatas Yukon Golds, ele nos convidou para irmos ao seu local de trabalho no dia seguinte para conhecermos sua coleção de ossos. Logo pela manhã, quando abandonamos a conferência e partimos de Dawson City para as minas, eu estava preparada para o sol, para os mosquitos onipresentes do Klondike e para a possibilidade de encontrar um urso. Só não estava preparada, como veremos, para a lama.

Mais ou menos 20 minutos depois de deixar a cidade numa caminhonete alugada por Duane, saímos da estrada principal e começamos a serpentear pelas estradas poeirentas das mineradoras. Fiquei impressionada com o contraste entre os mundos natural e humano do Klondike. Num minuto estávamos passando por uma floresta virgem de pinheiros ou atravessando, com muita cautela, um riacho que tínhamos esperança de não ser muito fundo; noutro, já estávamos no meio de uma paisagem desnuda, onde tratores raspavam cascalhos na terra congelada. A estrada de terra seca era cheia de curvas, e meu estômago revirava quando nossa caminhonete ficava derrapando ao se aproximar dessas curvas. Quando finalmente chegamos numa longa entrada onde reduzimos a velocidade, eu, estando no banco do meio e desesperada por ar fresco, estendi minha mão por cima de Grant para baixar um pouco o vidro da janela. Foi quando aprendi a primeira lição sobre Klondike: fedia. Engoli a seco quando aquele cheiro desagradável me atingiu e, contrariada, afundei-me de volta no meu banco. Grant e Duane não pareciam notar o cheiro.

Pouco depois, paramos ao lado do galpão principal da mina e estacionamos. Grant e Duane saltaram, mas eu fiquei para trás. O fedor parecia estar piorando. Eu cogitei ficar na caminhonete enquanto eles verificavam os ossos, mas acabei saindo porque eu realmente queria ver os ossos – e a mina. Então, parei de pensar, dei uma última respirada no ar da caminhonete, abri a porta e mergulhei no fedor.

Assim que toquei o chão de cascalho, equilibrei-me e olhei ao redor. À minha direita estavam o galpão e alguns alojamentos, à minha esquerda um banheiro móvel (talvez a fonte do mau cheiro?), um par de caminhões e o que presumi serem grandes caçambas de lixo cheias de engenhocas de metal enferrujadas. À distância, vi várias pessoas, provavelmente mineiros, mexendo no que parecia ser uma mangueira de bombeiro montada em uma plataforma fixa. Duane já havia se aproximado deles, então o segui, ansiosa para me distanciar do que quer que estivesse causando aquele cheiro horroroso.

Curiosamente, quanto mais nos aproximávamos dos mineiros, mais intenso o fedor se tornava. Olhei para Grant e tapei meu nariz com nojo. Diante de nós, um poderoso gerador deu partida, ferindo mais um dos meus sentidos. Quase estourou os meus tímpanos e, como protesto, chutei uma pedra que atingiu Duane na parte de trás de sua bota.

Ele virou-se para mim. “O que foi?”, gritou mais alto que o gerador e, ao que parece, indiferente ao cheiro. Grant riu. “É a primeira vez dela!”, lembrou.

“Ah”, respondeu Duane, já se virando com os olhos apertados por causa do sol, tentando ver se o seu amigo fazia parte do grupo que estava perto da mangueira de incêndio. Continuou:
“É o cheiro, né? Do que você acha que essa lama é feita?”, perguntou de forma retórica. “São mamutes mortos”, informou Grant, rindo. “Também arvores e gramas mortas, além de outras merdas que estão apodrecendo desde a última era glacial”.
Isso fazia sentido. Se detritos orgânicos congelados por milhares de anos fossem expostos ao sol do verão, certamente gerariam um odor desagradável.

“E lodo glacial”, acrescentou Duane. “É melhor ter cuidado!”. Nós três continuamos em direção à engenhoca de bombeiro que agora funcionava. Eu estava tentando me habituar ao cheiro e ao barulho, enquanto Duane balançava os braços sobre a cabeça, gritando.
Os mineiros nos avistaram e reduziram o fluxo da água, fazendo com que o gerador diminuísse a intensidade. Interpretando isso como um convite, Duane correu até eles para conversar. Grant e eu ficamos esperando onde estávamos, examinando a lama recém-exposta em busca de sinais de vida da era do gelo.

Quase imediatamente, avistei a ponta de um chifre de bisão saindo do solo congelado perto da base de onde estávamos. Animada, cutuquei Grant, apontando o chifre. Ele sorriu, impressionado (eu presumi) com minhas habilidades de mineração de ossos, e fez sinal para que eu fosse pegá-lo. Empolgada por ter encontrado meu primeiro fóssil da era do gelo, fui em direção à ribanceira. Passei na ponta dos pés por uma corrente rasa de água que saía do local dinamitado e pulei por cima de uma poça que havia se formado numa pequena depressão. Foi quando aprendi minha segunda lição sobre o Klondike: é preciso pisar delicadamente. Ainda sem saber dessa regra, minha aterrissagem indelicada me deixou com os tornozelos afundados na lama. Entrei em pânico. Puxei um pé para cima, mas como não consegui tirá-lo da lama, o outro, graças à pressão extra, afundou ainda mais. Puxei meu pé novamente e, desta vez, o pé subiu, mas a bota ficou atolada. Eu cambaleei com meu pé com meia pairando sobre a lama molhada. Então, perdi o equilíbrio e caí para trás com os dois pés, as duas mãos e minha bunda plantada na areia movediça fedorenta. Olhei para Grant em busca de ajuda, apenas para encontrá-lo se contorcendo de rir da situação em que havia me colocado.

“Eu disse para você ter cuidado!”, Duane gritou ao lado da mangueira de bombeiro, onde ele e os mineiros estavam todos me olhando, rindo e balançando a cabeça.

Depois que eu finalmente me desvencilhei da lama (um esforço que envolveu remover as duas botas, perder uma meia e me juntar ao fedor de coisas mortas em decomposição há milhares de anos; e também, agora sei, um rito de passagem para trabalhar na região), voltamos para o galpão de mineração para examinar a coleção de ossos. Eram principalmente ossos de bisão, o que me agradou porque eu estava estudando bisões da era do gelo, mas também havia ossos de cavalo, de mamute e também pedaços de suas presas, ossos e chifres de rena e os estranhos ossos de urso e de gato. Nos disseram para levar os ossos ao museu em Whitehorse, por isso etiquetamos cada um deles e registramos em nossos livros de campo quais eram as espécies, a data da coleta e o nome da mina. Usando uma furadeira a bateria, tirei pequenas amostras de vários ossos de bisão, dos quais extrairia DNA quando retornasse ao meu laboratório em Oxford.
Então, agradecemos aos mineiros, recolhemos nossas anotações e carregamos os ossos na caminhonete de Duane, preparando-os para serem transferidos para Whitehorse.

Como tudo começou – Beth Shapiro

Quando comecei minha pesquisa de pós-graduação em 1999, não pretendia estudar bisões. Eu não estava pensando neles enquanto passava ansiosa pelos corredores do departamento de Zoologia da Universidade de Oxford pela primeira vez. Nenhum pensamento com bisão surgiu quando encontrei o lugar onde me sentaria pelos próximos cinco anos de estudos. Nunca tive interesse particular em bisão quando criança, e só encontraria um, meses depois, quando usei uma serra Dremel para cortar um osso de 30 mil anos (sim, isso é importante). Tenho vergonha de admitir, de fato, que meu primeiro pensamento relacionado a bisão não foi particularmente amigável a eles, mas sim um estranho
esforço mental para imaginar uma resposta apropriada, mas negativa, à sugestão do meu futuro supervisor: “Por que você não trabalha com bisão?” Felizmente para minha carreira, ele seguiu dizendo: “Se você pegar este projeto, pode ir para a Sibéria”. Como eu poderia dizer não?

Eram os primórdios do campo científico conhecido como DNA antigo, que havia nascido cerca de 15 anos antes, quando cientistas que trabalhavam no laboratório de pesquisa de Allan Wilson na Universidade da Califórnia, Berkeley, recuperaram e sequenciaram o DNA de um pequeno pedaço de tecido muscular
retirado de restos preservados de 100 anos de uma quagga, um tipo extinto de zebra. A descoberta de que o DNA às vezes era preservado em organismos mortos desencadeou um frenesi científico. Formaram-se equipes com o objetivo de sequenciar o DNA de outras espécies extintas em laboratórios ao redor do mundo, numa verdadeira competição para recuperar o DNA preservado de mamutes, ursos das cavernas, moas e neandertais. À medida que se acirrava a concorrência para publicar o DNA antigo e o DNA dos espécimes mais incomuns, pouca atenção foi dada à validação dos resultados mais espetaculares. Em meados da década de 1990, foram publicados em revistas científicas respeitáveis
o DNA de um dinossauro e um atribuído a insetos sepultados em âmbar fossilizado. O entusiasmo era nítido, mas havia um problema. Embora algumas sequências de DNA antigas publicadas pudessem ser validadas, nenhuma das sequências de DNA extremamente antigas era real. Na verdade, a maioria (não
todas) das sequências de DNA supostamente de centenas de milhares de anos foram identificadas como contaminadas, às vezes por micróbios, às vezes por pessoas e às vezes pelo que os pesquisadores haviam comido no almoço. Foram os dias sombrios do DNA antigo.

Em 1999, quando iniciei minha carreira na pesquisa do DNA antigo, o campo estava começando a se firmar como uma disciplina científica séria. Os cientistas tinham aprendido que o DNA antigo tende a ser decomposto em fragmentos minúsculos e quimicamente danificados e que os experimentos com DNA antigo são frequentemente contaminados com DNA intacto de organismos vivos, como o da pessoa que faz o trabalho. No final da década de 1990, alguns institutos e universidades investiram muito dinheiro para desenvolver laboratórios meticulosamente limpos para a pesquisa. Os cientistas que chefiavam esses laboratórios propuseram protocolos rigorosos para realizar pesquisas com DNA antigo, incluindo trabalhar apenas em ambientes esterilizados, embebendo tudo com alvejante para destruir o DNA potencialmente contaminante, usando trajes descontaminados, com botas, luvas, toucas de cabelo e máscaras faciais para evitar a contaminação de amostras antigas e não ter os resultados produzidos questionados por laboratórios concorrentes. O efeito secundário dessas medidas foi a limitação do número de laboratórios que poderiam competir nessa busca pelo DNA mais antigo e mais interessante.

Quando entrei hesitante em Oxford e no campo do DNA antigo, felizmente sem conhecer o mundo competitivo em que estava pisando, o laboratório ainda começava a tomar forma. Alan Cooper, seu diretor e meu futuro chefe, tinha acabado de chegar de Berkeley, vindo do grupo de Allan Wilson, no qual ele e muitas figuras influentes do DNA antigo foram treinadas. Alan tinha garantido um espaço limpo para pesquisa com DNA antigo no Museu de História Natural da Universidade de Oxford, e contratou Ian Barnes para trabalhar no laboratório como bolsista de pósdoutorado.

Quando concordei em me juntar a eles, éramos três. Pode-se imaginar que, num campo de pesquisa relativamente novo, no qual apenas alguns laboratórios estavam participando, eu poderia escolher os tópicos da minha pesquisa. Não é assim no DNA antigo. Em 1999, as taxa, que são unidades de classificação de organismos, tinham sido divididas entre os laboratórios, e as mais empolgantes – carnívoros, humanos antigos e qualquer outra coisa que pudesse despertar o interesse de editores científicos e jornalistas – já haviam sido reivindicadas. Svante Pääbo* (também do grupo de Allan Wilson) e Hendrik Poinar, do recém-criado Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária em Leipzig, Alemanha, reivindicaram mamutes, preguiças gigantes, humanos e neandertais. Bob Wayne, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, reivindicou cães, lobos e cavalos. Ross MacPhee, do Museu Americano de História Natural, reivindicou o boi almiscarado. Alan reivindicou ursos e gatos, que foram posteriormente sub-reivindicados por Ian, e bisões, com os quais ninguém parecia se importar muito.

Embora eu não estivesse exatamente apaixonada por bisões, via o DNA antigo como algo extremamente interessante. Em um programa de campo de verão de graduação em Geologia, fiquei fascinada com a forma como os processos da Terra moldavam os sistemas vivos. Fiquei particularmente intrigada com as cicatrizes visíveis na paisagem, com os sucessivos avanços e recuos de geleiras maciças durante a época do Pleistoceno – período geológico que abrangeu a maior parte dos últimos milhões de anos. Imaginei como cada avanço de geleira deve ter redefinido os sistemas vivos em seu caminho, causando extinções, criando novas combinações de espécies e oferecendo oportunidades para a evolução. A era glacial mais recente também coincidiu com o primeiro grande influxo de pessoas para a América do Norte, o que sem dúvida ampliou a drástica mudança biológica provocada gradualmente pelo recuo glacial, não muito diferente da drástica mudança biológica que ocorre gradualmente hoje. Na verdade, escolhi Oxford justamente para estudar essa conexão entre o passado e o presente – para aprender Paleontologia e Biologia Evolutiva, dois dos pontos fortes da universidade, e combiná-los com meu treinamento em Geologia e Ecologia. Até conhecer Alan, eu não tinha ouvido falar de DNA antigo, mas seu potencial para revelar como as eras glaciais recentes afetaram a evolução da vida na Terra já era óbvio. Se eu pudesse aprender a extrair e analisar o DNA antigo, então poderia rastrear as mudanças evolutivas conforme foram registradas no DNA durante os períodos de transformações biológicas passados. Eu poderia aprender lições do passado que seriam relevantes para proteger espécies e ecossistemas hoje. Sim, eu estava entusiasmada demais, mas é preciso considerar que o DNA antigo era mesmo muito legal.

Mas havia problemas no meu plano. Eu não tinha experiência em Biologia Molecular; nunca havia manuseado uma pipeta ou extraído DNA; não tinha ideia de quais pedaços específicos de DNA eu deveria estudar; não sabia onde ou como conseguir fósseis para poder extrair DNA. E, claro, não sabia nada sobre bisões.

Você sabe o que é um bisão? Conheça mais sobre as descobertas, estudos e da professora de biologia evolutiva, Beth Shapiro, no livro Brincando de Deus.


Beth Shapiro é professora de Biologia Evolutiva na Universidade da Califórnia em Santa Cruz e pesquisadora no Instituto Médico Howard Hughes. É autora de How to Clone a Mammoth, que ganhou o Prêmio AAAS/Subaru de Excelência em Livros Científicos. Ela vive em Santa Cruz, na Califórnia.

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