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trabalho escravo contemporaneo
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28 de janeiro | Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo

A data foi criada em 2009 para homenagear Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira, que foram assassinados em 28 de janeiro de 2004 durante inspeção para apurar denúncias de trabalho escravo em fazendas da região de Unaí (MG), episódio que ficou conhecido como Chacina de Unaí.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho análogo à escravidão é “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa que sob ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente”.

O Código Penal também diz que é crime “reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.


O Trabalho Escravo Contemporâneo

Entre 1995 e setembro de 2019, mais de 54 mil pessoas foram encontradas em regime de escravidão em fazendas de gado, soja, algodão, café, laranja, batata e cana-de-açúcar, mas também em carvoarias, canteiros de obras, oficinas de costura, bordéis, entre outras unidades produtivas no Brasil. 

Ao longo desse período, o trabalho escravo contemporâneo deixou de ser encarado como um problema restrito a regiões de fronteira agropecuária, como Amazônia, Cerrado e Pantanal. Hoje também é combatido nos grandes centros urbanos. Além disso, passou a ser compreendido não como resquício de formas arcaicas de exploração que resistiram ao avanço da modernidade, mas como instrumento adotado por empreendimentos para garantir lucro fácil e competitividade em uma economia cada vez mais globalizada.

Todo ano, milhares de pessoas são traficadas e submetidas a condições desumanas de serviço e impedidas de romper a relação com o empregador. Não raro, são impedidas de se desligar do trabalho até concluírem a tarefa para a qual foram aliciadas, sob ameaças que vão de torturas psicológicas a espancamentos e assassinatos. 

No Brasil, essa forma de exploração é chamada de trabalho escravo contemporâneo. 

A partir de 13 de maio de 1888, por meio da Lei Áurea, o Estado brasileiro deixou de reconhecer o direito de propriedade de uma pessoa sobre outra. Contudo, persistiram estratégias de submissão dos trabalhadores, as quais, a despeito de não terem respaldo oficial, negavam a eles liberdade e, sobretudo, dignidade. Chamamos de dignidade o conjunto básico de garantias a que devemos ter acesso simplesmente pelo fato de fazermos parte do gênero humano. Quando negada, pessoas são tratadas como instrumentos descartáveis de trabalho.

As naturezas legal e econômica do trabalho escravo contemporâneo diferem das características do trabalho escravo da Antiguidade clássica e daquela que aqui existiu durante a Colônia e o Império. Entretanto, o tratamento desumano, a restrição à liberdade e o processo de “coisificação” dos trabalhadores são similares. O número de envolvidos é relativamente pequeno se comparado à população economicamente ativa, porém, não desprezível. 

Apesar de a cor de pele e a etnia não serem mais portas de entrada exclusivas para a escravidão, números da Divisão de Fiscalização do Trabalho Escravo do Ministério da Economia apontam que a proporção de negros entre o total de pessoas submetidas ao trabalho escravo contemporâneo é maior do que a sua participação entre o total de brasileiros, consequência direta de uma abolição incompleta, que não garantiu inclusão real aos descendentes dos africanos traficados para o Brasil. O trabalhador escravizado é pobre. E a pobreza, infelizmente, ainda persiste e tem “preferência” por cor de pele no Brasil. Não à toa, movimentos negros preferem celebrar o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, a comemorar o 13 de maio.

Além da Lei Áurea, o Brasil ratificou diversos tratados internacionais prometendo combater esse crime, como as convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, da Organização das Nações Unidas (ONU). Além de, evidentemente, ser signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamado pela Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948.

Como o Estado brasileiro já não admite a possibilidade de uma pessoa ser “dona” de outra, também não reconhece o trabalho escravo como relação legítima ou legal. Por isso, quando nosso Código Penal foi aprovado, em 1940, esse crime ficou conhecido como “redução à condição análoga à de escravo”. Do ponto de vista técnico e jurídico, essa é a nomenclatura para definir tal forma de exploração. Na prática, é o mesmo que trabalho escravo contemporâneo. 

Neste livro, usaremos predominantemente o conceito de “trabalho escravo contemporâneo”, com exceção dos momentos de discussão legal, na qual o outro termo é empregado.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos definem trabalho escravo contemporâneo, de maneira combinada ou isolada:

  • Cerceamento de liberdade – a impossibilidade de quebrar o vínculo com o empregador, que pode se valer de retenção de documentos ou de salários, isolamento geográfico, ameaças, agressões físicas, espancamentos e tortura; 
  • Servidão por dívida – o cativeiro mantido pela imposição de dívidas fraudulentas, relacionadas a transporte, alimentação, hospedagem, adiantamentos, dentre outras; 
  • Condições degradantes de trabalho – o meio ambiente de trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde, a segurança e a vida da pessoa;
  • Jornada exaustiva – o cotidiano de trabalho que leva o trabalhador ao completo esgotamento físico e psicológico e à impossibilidade de ter uma vida social, dada a intensidade e a duração da exploração, colocando em risco sua saúde e sua vida. 

Há também outros conceitos utilizados para descrever esse mesmo fenômeno: formas contemporâneas de escravidão (usado, por exemplo, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos); escravidão contemporânea (uma variação do termo usado neste livro); trabalho escravo moderno e escravidão moderna (utilizados em países como os Estados Unidos e o Reino Unido). 

Existe um debate global para uniformizar conceitos e nomenclaturas que não deve se esgotar tão cedo, dado que o fenômeno assume características próprias nos diferentes países em que se manifesta, apropriando-se de formas locais da exploração do ser humano e reinventando-as.

Um instrumento econômico

O trabalho escravo contemporâneo não é resquício de modos de produção arcaicos que sobreviveram ao capitalismo. Trata-se de um instrumento utilizado por empreendimentos para potencializar seus processos de produção e expansão. A superexploração do trabalho, da qual o trabalho escravo contemporâneo é a forma mais cruel, é deliberadamente utilizada em determinadas regiões e circunstâncias como ferramenta. Sem ela, empreendimentos atrasados não teriam a mesma capacidade de concorrer numa economia globalizada.

Em outras palavras, há empregadores que se valem desse expediente para ganhar competitividade, de forma desleal, no mercado – uma espécie de “dumping social”. Já outros se aproveitam dessa alternativa tão somente para aumentar suas margens de lucro.

Na década de 1970, a sociedade civil brasileira passou a denunciar sistematicamente a persistência desse tipo de exploração, tendo a Comissão Pastoral da Terra, ligada à Igreja Católica, à frente. Após décadas de pressão, o governo reconheceu perante à ONU, em 1995, a existência de trabalho escravo contemporâneo em seu território. Naquele ano, foi estabelecida uma política pública baseada em grupos especiais de fiscalização móvel, compostos por diversos agentes do Estado – auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho e da República, defensores públicos, policiais federais, rodoviários e militares, dentre outros servidores. Essas equipes investigam denúncias, resgatam pessoas e responsabilizam empregadores pelo pagamento de salários e direitos. Também tomam medidas judiciais para punir criminalmente e na Justiça do Trabalho quem viola a lei.

Baseado no trabalho dessas equipes, é possível saber que, dentre as finalidades mais comuns do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, encontram-se a derrubada de mata nativa e a limpeza de áreas para a constituição de empreendimentos agropecuários e extrativistas. Sim, parte do desmatamento da Amazônia brasileira recorre à mão de obra escrava. Além disso, ela também é utilizada na região para construção de cercas, plantação de pastos, produção de carvão vegetal e catação de raízes, tarefas que possibilitam o cultivo da soja e do algodão. 

Ao contrário do que propõe o senso comum, não são empregadores pobres os principais beneficiários do trabalho escravo contemporâneo. Em dezembro de 2001, uma equipe de fiscalização encontrou 54 pessoas escravizadas numa fazenda em Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará. Elas trabalhavam na ampliação da infraestrutura e na limpeza do pasto de uma fazenda de gado considerada modelo no desenvolvimento de matrizes reprodutoras, inseminação artificial e comercialização de embriões. O proprietário era um dos maiores criadores da raça Nelore naquele estado. Há diversos exemplos de fazendas de soja e algodão que empregavam tecnologias de última geração na produção de grãos e fibras, enquanto a preparação de solo e a ampliação de área haviam sido realizadas de forma arcaica, com baixo investimento.

Em outra operação ocorrida em Sinop, no Mato Grosso, foram libertados 22 trabalhadores em situação de escravidão na produção de arroz e soja. A ação foi motivada por denúncias de condições degradantes e cerceamento da liberdade. Algumas pessoas não eram pagas há meses, recebendo apenas comida e alojamento – pequenas barracas de lona nas quais se amontoavam, em redes, famílias inteiras. A água que utilizavam era imprópria e servia ao mesmo tempo para consumo, banho e lavagem de roupa. Inicialmente, 40 pessoas haviam sido contratadas para a empreitada. Porém, como não suportaram as duras condições impostas, muitos fugiram antes da fiscalização chegar. De acordo com a coordenadora da operação de resgate, os trabalhadores ouviam ameaças constantes por parte do gerente: “Maranhense tem que apanhar mesmo de facão”.

Durante a Ditadura Militar, a grilagem de terras e a escravização da força de trabalho foram largamente usadas na Amazônia para a implantação de fazendas. E isso não aconteceu por causa da “ausência do Estado”. Ao contrário, se deu pela ação direta de setores privados interessados na indiferença deliberada do poder público. Historicamente, empreendimentos flagrados com trabalho escravo têm conseguido recursos por intermédio dos governos federal, estadual e municipal. É comum encontrar nas porteiras das fazendas placas que trazem dados sobre financiamento público e provam que o Estado se faz presente por meio de incentivos fiscais e isenção de tributos.

Combater o trabalho escravo contemporâneo implica ferir interesses econômicos. Desde novembro de 2003, pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas por essa prática são inseridas num cadastro público, organizado pelo governo federal, chamado de “lista suja”. Grandes empresas brasileiras e estrangeiras já figuraram na lista. Desde 2003, a organização não governamental Repórter Brasil rastreou mais de 1.700 cadeias produtivas de empreendimentos de onde foram resgatadas pessoas escravizadas. A investigação alcançou também centenas de indústrias e varejistas brasileiros e multinacionais. 

Por quase duas décadas, representantes de grandes produtores rurais tentaram impedir a aprovação da Emenda Constitucional 81/2014. A medida prevê o confisco – sem indenização – de quaisquer propriedades rurais e urbanas onde o trabalho escravo é encontrado, destinando-as a programas habitacionais e de reforma agrária. Importantes atores econômicos também tentam impedir o cumprimento de uma lei, aprovada em São Paulo, que cassa por um período de dez anos o registro estadual de qualquer empresa que tenha se beneficiado de trabalho escravo. 

Resgatar trabalhadores da escravidão é fundamental, mas funciona como um remédio que até pode baixar a temperatura alta do organismo, mas que não vai curar a enfermidade. Ou seja, é necessário atacar o sistema que leva à reprodução do trabalho escravo. Para tanto, é preciso garantir acesso a emprego, educação, saúde, cultura, lazer, moradia e alimentação à população mais pobre, a qual acaba se tornando presa fácil para aliciadores de mão de obra. Se isso não ocorrer, todo o combate à escravidão vai tão somente enxugar gelo. O desafio não é simples: o trabalho escravo contemporâneo é um negócio global que movimenta ao menos 150 bilhões de dólares e atinge 40,3 milhões de pessoas anualmente, segundo dados das Nações Unidas.

Ainda assim, trata-se de um desafio necessário, e nele reside uma das mais importantes batalhas de nosso tempo. Afinal, enquanto qualquer ser humano for vítima de trabalho escravo, a humanidade não será, de fato, livre. 


Trecho do livro “Escravidão contemporânea”, escrito por Leonardo Sakamoto: jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professor de Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York. É diretor da Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e foi comissário da Liechtenstein Initiative – Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É colunista do portal UOL, onde escreve diariamente sobre política.