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27 de novembro de 1897 | Cinema Brasileiro

A data que define o nascimento do cinema brasileiro é controversa por diversos motivos. O primeiro deles diz respeito ao aspecto da atividade cinematográfica que foi, em vários períodos, levado em consideração no estabelecimento do momento inaugural.

As primeiras comemorações tinham um caráter oficial e foram realizadas entre os anos de 1936 e 1938 com o objetivo de celebrar em maio o mês do cinema brasileiro. A efeméride era vinculada à regulamentação pelo Governo Federal, em 26 de maio de 1934, de um decreto que instituía a obrigatoriedade do curta-metragem nacional antes da exibição de qualquer longa. Em um cenário marcado pela intervenção estatal na cultura, característico da Era Vargas, o reconhecimento do cinema como fator de integração nacional passava necessariamente pela identificação do sujeito dessa ação, ou seja, o próprio Estado.

27 de novembro de 1897 | Cinema Brasileiro

Se nos anos 1930 eram a exibição e o Estado os elementos a serem destacados, nos anos 1950 o referencial é mudado. O surgimento da Vera Cruz e sua proposta de instalar no país um cinema industrial foram acompanhados por um movimento de inserir o meio em balizas mais gerais do pensamento, incluindo temas como nação, imperialismo e progresso. Nesse quadro, realizam-se congressos, mesas-redondas, mostras retrospectivas, projetos de criação de institutos fomentadores e balanços históricos. Assim, o i Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, realizado em setembro de 1952, estabelece o dia 5 de novembro como o Dia do Cinema Nacional, data que até hoje é lembrada para comemorar o cinema brasileiro. A escolha se devia à ação de Antônio Leal, cinegrafista português que teria filmado em 1903 a avenida Central, hoje Rio Branco, na cidade do Rio de Janeiro. É assim que o apanhado feito por Carlos Ortiz, por exemplo, em O romance do gato preto: história breve do cinema, de 1952, descreve “o primeiro giro da manivela”. O referencial é, portanto, outro. Destaca-se a ação do cinegrafista, responsável pela “certidão de nascimento”, e o centro das atenções reside agora na filmagem, não mais na exibição.

O debate em torno da “paternidade” permanecerá até os anos 1990. Na década de 1950, no entanto, as amplas sistematizações históricas já indicavam as lacunas e a necessidade de realizar novas pesquisas, ancoradas em documentação mais consistente. Ainda em 1957, Adhemar Gonzaga, por exemplo, já situava o final do século xix como o momento dos primeiros registros cinematográficos. Leal, por sua vez, foi desbancado do posto, pois foi constatado que seu envolvimento com o cinema data de 1905. Nos anos 1960, Vicente de Paula Araújo já colocava à disposição dos pesquisadores os resultados de seus levantamentos, somente publicados em 1976 em A Bela Época do cinema brasileiro. Com base nele, situou-se no dia 19 de junho de 1898 o momento inaugural, segundo nota do jornal A Gazeta de Notícias, que comunicava a chegada ao Rio de Janeiro de Afonso Segreto, vindo de Paris. Segreto, a bordo de um navio e equipado de um cinematógrafo, “ao entrar à barra, fotografou […] as fortalezas e os navios de guerra”.

José Inacio de Melo Souza, em texto publicado em 1993, fixa nova ação e sujeito como fruto de seu contato com o acervo do Arquivo Nacional. Ele localizou o pedido de patente feito no dia 27 de novembro de 1897 pelo médico, advogado, bicheiro e empresário teatral José Roberto da Cunha Salles de um invento denominado “fotografias vivas”. Como anexo comprobatório, são juntados à solicitação dois fragmentos de filmes, 24 fotogramas no total, correspondendo a pouco mais de um segundo de projeção. Ao contrário das indicações feitas acima, nas quais não há qualquer imagem dos eventos  mencionados, temos aqui o que restou do filme. Esses fotogramas podem ser vistos no experimental Reminiscências (1997), do cineasta Carlos Adriano.

Certamente, objeções podem ser feitas a respeito da origem do material, uma vez que não seria difícil imaginar Cunha Salles incorporando ao processo cenas registradas por outro cinegrafista em outras praias. O interesse pelo mar pode ser atestado em um pequeno filme como Rough sea at Dover (1895), do inglês Birt Acres. O espocar das ondas provavelmente atraia os cinegrafistas que procuravam demonstrar a superioridade técnica de seu aparelho por meio da reprodução a mais nítida possível do movimento das águas. Mares, praias, navios, rios e cataratas constituem objeto de um grande número de filmes no chamado primeiro cinema. Nada impede, por sua vez, que nosso advogado-bicheiro tenha aqui buscado algo que interessasse vivamente o público de sua época. Em virtude do registro da patente e da existência do material, 27 de novembro pode ser considerada a data inaugural do cinema brasileiro.

Jean-Claude Bernardet, em seu livro Historiografia clássica do cinema brasileiro, de 1995, comparando nossa historiografia com a de outros países, destaca uma diferença fundamental. Na França, o nascimento do cinema é marcado pela projeção dos filmes dos irmãos Lumière em uma sessão pública e paga no dia 28 de dezembro de 1895, ao passo que nosso batismo ocorre pelo acionamento da máquina de filmar, independentemente da exibição e da existência ou não de um público. Nesse sentido, a historiografia revela sua identificação com uma concepção de cinema restrita à produção de filmes, deixando de lado a exibição e o contato com o público. Filosofia que, para Bernardet, expressa uma visão corporativa que os cineastas brasileiros têm de si mesmos e que tinha responsabilidade pela situação de estagnação na qual se encontrava a produção de filmes no país. O autor escreve em um momento em que a chamada retomada do cinema brasileiro ainda não havia se configurado.

Dentro dessa perspectiva que privilegia a produção de filmes, em sua grande maioria ligada ao universo ficcional, essa trajetória é marcada por diversos momentos. Tivemos os chamados ciclos regionais, ocorridos em diferentes cidades, como Recife, Campinas, Guaranésia, Pelotas etc. De uma delas, Cataguases, emergiu no final dos anos 1920 a figura de Humberto Mauro, tido como um dos cineastas mais profícuos de nossa história. Da Cinédia, empresa criada por Adhemar Gonzaga em 1930, surgiram obras importantes, como Ganga bruta (1933), de Mauro, O ébrio (1946), de Gilda Abreu, além dos filmes musicais. As chanchadas estiveram ligadas ao nome da Atlântida, companhia fundada em 1941. A Vera Cruz, empreendimento paulista existente entre 1949 e 1954, tornou possível O cangaceiro (1953), de Lima Barreto. O Cinema Novo, com Glauber Rocha, e o chamado Cinema Marginal, com Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, atualizaram o cinema brasileiro dentro dos quadros das transformações ocorridas na cinematografia mundial. Nomes como Eduardo Coutinho e Walter Salles expressam a diversidade estética e o fortalecimento do documentário dentro do cinema brasileiro contemporâneo. No início do século xxi, outras são as questões, e a História atualmente produzida acerca de nossas primeiras imagens em movimento deixa de lado a perspectiva autoral, pensando-a dentro de um referencial no qual as questões de estilo estão vinculadas às temáticas da História cultural, como a das mudanças provocadas pela percepção de um novo tempo (modernidade) e as suscitadas também pela existência do cinematógrafo. Essa História cultural da modernidade tem um palco: a metrópole urbana. Nessa perspectiva, diferentes recortes, temas e, enfim, datas estão surgindo. Por isso, o 27 de novembro também é marcado pelo signo da transitoriedade. Deixemos que sua efemeridade ou permanência seja determinada pelos próximos historiadores.


Eduardo Morettin – Doutor em Cinema e professor de História do Audiovisual na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (eca-usp).