Em 9 de março de 1500, quando a armada de Cabral largava a Ribeira das Naus rumo ao Oriente, o rei, D. Manuel, de alcunha o Venturoso, pretendeu revestir o fato de grande pompa. Afinal, sua coroa agora abarcava um Império que se tornava mais amplo a cada passo, sobretudo depois da descoberta da rota para a Índia, feita por Vasco a Gama. A cada viagem, mais comprometido estava com o alargamento da fé cristã, fundamento último de seu poder. Lisboa tornava-se o entreposto de vasta rede comercial, onde se trocariam mercadorias produzidas nos quatro cantos do mundo. Esses anos ultimavam um século de transformações profundas que colocava Portugal no centro da história europeia e no comando de uma importante evolução mental. São anos, contudo, em que ainda se misturam a inovação e a conservação, o fascínio pelo desvelamento do mundo e a reiteração das imagens do maravilhoso. Não era sem dilaceramento que os homens de então sentiam esse tempo de mudanças.
Há mais de um século, uma revolução transformara de maneira radical a estrutura do Estado português, permitindo, então, a evolução social que conduziria essa pequena nação ao comando da aventura ultramarina. A crise do mundo feudal, que atingira a Europa na metade do século XIV, fora sentida em Portugal, afligido pelas pestes, pela fome e pelas guerras. Para o historiador Joel Serrão, foi a depressão trecentista, aliada à desestruturação da economia agrária senhorial, que condicionou Portugal a procurar “na intensificação do tráfego marítimo uma ‘saída” para suas dificuldades”. Um dos resultados sociais e políticos mais imediatos dessa crise foi o aumento das revoltas e sedições populares em toda a Europa. Em Portugal, as incertezas na sucessão dinástica de 1383 evoluiriam para um realinhamento social que impulsionou a revolução popular e conduziu o hesitante D. João, filho bastardo da bela Teresa Lourenço com D. Pedro i (morto em 1367) e mestre da Ordem militar de Avis, a tornar-se novo monarca. Sob o signo dessa nova dinastia, chamada então “de Avis”, é que serão realizadas as grandes viagens de descobrimento de novas rotas comerciais e de novas terras. Seu filho, o infante D. Henrique, ficaria famoso pelo impulso dado às viagens para a costa africana. Seu bisneto, D. João ii – que seria conhecido como o Príncipe Perfeito –, orientou então as empresas marítimas, feitas em consórcio com os grandes negociantes portugueses, genoveses e venezianos, para a busca de um caminho por mar para a Índia.
O sucesso dessas viagens está associado a duas ordens de fatores: de um lado, o progresso da arte de marear e, de outro, as mudanças na concepção de espaço e a revolução cartográfica. Procurando cumprir o projeto de navegar até a Índia, dando a volta pelo sul da África, os pilotos portugueses tiveram que desenvolver, pouco a pouco, as próprias embarcações e também melhorar as técnicas de navegação no alto-mar. Depois do cabo do Bojador, na costa ocidental da África, os ventos de Nordeste dificultavam enormemente a torna-viagem. Somente as caravelas, com velas latinas, eram aptas a navegar de bolina (isto é, contra o vento). Uma vez dobrado o cabo da Boa Esperança (1487), eram necessárias embarcações maiores e mais fortes, capazes de suportar a viagem.
A evolução das cartas de marear e bússolas e dos instrumentos para a medição da latitude (como a balestilha ou o astrolábio) somava-se às novas formas de cálculo assistido. Por outro lado, a difusão de novas imagens do mundo e, em particular, a Geografia de Ptolomeu, rompiam com as teses dominantes de uma terra plana e combinavam-se com uma mudança na atitude mental dos europeus, envolvidos com o processo de expansão da economia-mundo. A redescoberta de Ptolomeu preparava esses homens para a grande aventura marítima dos séculos xv e xvi. Contudo, os próprios resultados da expansão ultramarina iriam solapar as bases da geografia ptolomaica, produzindo uma verdadeira revolução cartográfica. A consciência dessa nova geografia e a comprovação da esfericidade do mundo permitiriam o ponto de partida para a negação de uma noção geocêntrica do universo.
O historiador Vitorino Magalhães Godinho mostrou como a cartografia, os portulanos, as cartas de marear, ao registrar as navegações, descrevendo as costas observadas, construíam um espaço terrestre segundo um esquema determinado pela experiência. Do espaço simbólico, de um mundo dominado pelo fantástico, passava-se “ao espaço da percepção visual (perspectiva na pintura) da operatoriedade euclidiana, com base na medida, na posição e na forma”. O espaço mítico se desagrega para ceder o lugar ao espaço da função do real. O mesmo historiador nos lembra que o cosmógrafo e navegador Duarte Pacheco Pereira se espantava no início dos Quinhentos com o fato de que “sabe-se mais em um dia agora pelos portugueses do que se sabia em cem anos pelos romanos”. A atitude dos portugueses era, como já foi notado, oposta à do humanismo renascentista, então inspirado nas realizações dos gregos e romanos. Para os portugueses, que tinham por mestra a longa experiência, nada valiam os juízos mais antigos da ciência ou do engenho.
Foi nesse contexto que, no dia 9 de março de 1500, a armada comandada pelo fidalgo Pedro Álvares Cabral (com 13 embarcações e cerca de 1.300 homens) deixou Lisboa e rumou em direção ao Cabo Verde. Depois de lá passar, dirigiu-se ao oceano para, um mês depois, avistar alguns sinais de terra. Na manhã do dia 22 de abril, avistam um monte redondo, a que chamaram de Pascoal por estarem na semana da Páscoa. A descrição detalhada do sucedido nos dias seguintes, até quando, no 2 de maio, partem para a Índia, nos é apresentada pelo escrivão Pero Vaz de Caminha em sua importante e tão conhecida carta. Nomeada, pelo capitão-mor, como Terra de Vera Cruz, foi posteriormente mudada para Terra de Santa Cruz e, garantida a sua posse, para Província de Santa Cruz. A terra também foi apelidada, naqueles tempos, de “Terra dos Papagaios”, em razão das grandes e coloridas araras que Pedro Álvares fez enviar para Portugal. O nome dado à província, “de Santa Cruz”, foi logo corrompido para o de Brasil. O nome vinha de um pau que ali abundava e era chamado de “Brasil” pela cor abrasada e vermelha que tinha, com que se tingiam panos. O português Gandavo, autor de uma história da Província de Santa Cruz, publicada em 1576, lamentava-se que certamente essa troca de nomes havia sido “obra do demônio, que tanto havia trabalhado para extinguir a memória da Santa Cruz”…
O Brasil, então, era uma unidade geográfica, mais do que uma realidade histórica ou política. O que hoje nós chamamos Brasil é o que a colonização portuguesa construiu nessa parte austral da América e que, no início do século XIX, evoluiu historicamente para uma sociedade emancipada e um Estado nacional unificado. Durante o período que costumamos chamar de colonial, o Brasil não passava de um grupo de circunscrições administrativas e jurídicas, sem título certo. Nas palavras do historiador Fernando Novais, “quando falamos de um período colonial da história do Brasil, falamos de algo que não existiu: o que houve foi uma colonização portuguesa”. O anacronismo estaria “em fazermos a história daquilo que ocorre neste território, que mais tarde será o Brasil, como algo necessário, uma destinação do Estado soberano que se forma no século XIX, tal como uma destinação histórica, como que inscrito nas caravelas de Cabral”.
Bibliografia
- Cortesão, Jaime. Os descobrimentos portugueses. Lisboa: Caminho, 1990, 3 vols.
- Couto, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa: Cosmos, 1998.
- Godinho, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa: Presença, 1981-83, 4v.
- Guedes, Max Justo. O descobrimento do Brasil. Lisboa: Vega, 1989.
Pedro Puntoni é professor de História do Brasil na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Fonte: PUNTONI, Pedro. “Descobrimento do Brasil”. In: BITTENCOURT, Circe (org.) Dicionário de datas da História do Brasil. Editora Contexto.
Imagem: Desembarque de Cabral em Porto Seguro (óleo sobre tela), autor: Oscar Pereira da Silva, 1904. Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.