Lançamos há algum tempo o livro Pandemias: a humanidade em risco, do médico infectologista Stefan Cunha Ujvari. Já naquela época ele falava sobre os perigos do vírus Zika, transmitido também pelo mosquito Aedes aegypti (popularmente conhecido como mosquito-da-dengue), que poderia a qualquer momento chegar ao Brasil.
NOVO VÍRUS ECLODE NA MICRONÉSIA
Em 18 de abril de 1947, o macaco rhesus número 766 adoece no interior da jaula assentada na plataforma construída nos elevados galhos de uma floresta em Uganda. Por que o macaco estava lá no alto? Pesquisadores da Fundação Rockfeller o haviam colocado nas alturas para ser agredido pelos mosquitos florestais e adquirir o vírus da febre amarela para estudos. Porém, esse animal, dito sentinela, trouxe outra descoberta aos pesquisadores. Uma vez febril, foi levado ao laboratório da capital Entebbe, e lá, o sangue do rhesus 766 foi inoculado no cérebro de camundongos para que tal vírus se reproduzisse. Em dez dias, todas as cobaias, agora doentes, forneceram grandes quantidades do vírus então descoberto. O macaco adquiriu a infecção nas árvores da floresta de Zika, Uganda, daí o nome que o recém descoberto recebeu: vírus Zika.
Um ano depois, os pesquisadores encontraram o vírus na natureza, no interior de uma espécie de mosquito Aedes da floresta Zika. Estava confirmado: a doença era transmitida pela picada dos mosquitos do gênero Aedes. Portanto, a doença pode se acomodar em qualquer região infestada por tal mosquito, ou seja, nos trópicos, inclusive no Brasil. Desde sua descoberta, o vírus Zika não causou epidemias, apenas 14 pessoas foram diagnosticadas com a doença em todo o mundo. As sorologias mostram infecções passadas em pessoas de nações africanas (Egito, Nigéria, Uganda e Senegal) e asiáticas (Índia, Paquistão, Malásia, Indonésia, Tailândia e Vietnã). Isso mostra que os sintomas da doença causada pelo Zika são leves e passageiros, não se fazendo o diagnóstico. Apesar dos poucos casos e a ausência de epidemias até aquele momento, essa história estava prestes a mudar em 2007.
Ao norte da Austrália, partindo da Nova Guiné em direção norte, encontra-se um conjunto de ilhas, a leste das Filipinas, que formam o Estado Federativo da Micronésia. Em um de seus estados encontramos a ilha Yap, com cerca de 15 km de extensão e 6 km de largura. Em abril de 2007 iniciou-se uma epidemia entre os moradores da ilha. Os médicos, no início, acharam ser mais uma epidemia de dengue que acometia a ilha: já sofrera duas anteriores. Os quatro centros de saúde e o hospital da ilha atendiam filas de doentes com febre, dor pelo corpo, dor nas juntas, conjuntivite e lesões cutâneas sugestivas de processo viral. Uma provável epidemia de dengue ganhava força pelo exame de sangue de três pacientes atendidos: sorologia positiva para o vírus da dengue.
Apesar disso, um grupo de médicos não se conformara com o diagnóstico. Os sintomas dos pacientes não eram típicos da doença, como os que haviam sido vistos nas duas epidemias anteriores de dengue. As sorologias positivas foram trocadas pelos médicos, que enviaram amostras de sangue dos doentes para um centro de pesquisas no Colorado, eua, em junho, no terceiro mês de epidemia. O laboratório americano informou que havia encontrado, em 14% das amostras, o rna do vírus Zika, enquanto várias outras amostras revelaram sorologias positivas. A epidemia da ilha Yap estava esclarecida.
O vírus deve ter chegado a Yap por viajantes infectados vindos das Filipinas, onde sorologias prévias de seus habitantes mostraram a presença do vírus Zika pela ilha. O fluxo humano entre as ilhas é grande, e as Filipinas abrigam os grandes centros urbanos próximos de Yap. O viajante infectado, com vírus no sangue, foi picado pelas espécies de Aedes que habitam Yap. E são muitos os focos: a larva ou pupa do mosquito foi encontrada em quase metade das coleções de água da chuva, e em coleções de água de mais da metade das casas investigadas. Portanto, a ilha, coberta de matas, era um caldeirão para epidemias transmitidas pelo Aedes. Porém, foi a dimensão da epidemia que mais impressionou.
Os investigadores visitaram e questionaram moradores da ilha a respeito de sintomas anteriores, revisaram prontuários médicos de pacientes atendidos ou internados, e coletaram sangue de uma parcela da população em busca de sorologia que indicasse infecção prévia. Descobriram que uma boa parte da população relatou sintomas semelhantes à doença nos meses da epidemia, e muitos nem foram ao médico. Encontraram sorologias indicativas de infecção passada durante o pico da epidemia. Após interpretarem os resultados estatísticos e cálculos, concluíram que, provavelmente, cerca de cinco mil dos quase sete mil moradores da ilha adquiriram infecção pelo vírus Zika. A doença deve ter atingido cerca de 70% dos habitantes da ilha: a única e maior epidemia até então.
Por ser uma doença com sintomas leves e passageiros, é comum não fazer seu diagnóstico. Os pacientes melhoram após poucos dias, e sequer procuram o médico. Se forem à consulta médica poderão receber o diagnóstico de uma provável virose, bem como o tratamento padrão: repouso, antitérmico e hidratação com água e sucos. Exceto no caso de uma epidemia que aflorará aos olhos da população e dos órgãos de saúde: nesse caso se empenharão para saber qual vírus se alastra pela população. A sorologia positiva para dengue atrapalhará as conclusões. Por que a infecção pelo Zika causa a falsa sorologia positiva para o vírus da dengue? Ambos os vírus pertencem à mesma família, bem como o da febre amarela. Por isso, apresentam algumas semelhanças no material genético, o que pode fazer os anticorpos produzidos contra o Zika reagirem parcialmente com os exames para dengue.
Se a infecção chegar ao Brasil, teremos diversas sorologias positivas para dengue enquanto o vírus Zika se alastra pelo Aedes aegypti brasileiro de maneira oculta. Demoraremos em reconhecer sua chegada, que apesar de causar desconforto e deixar o doente acamado, não mata. Os casos do vírus Zika deverão ser confundidos com a dengue. É provável que o vírus, pela abundância de mosquitos, se dissemine pelas ilhas do Pacífico, pelas nações da Ásia e África, e chegue à América. Poderá vir por viajante infectado ou mosquito transportado nas embarcações ou em aviões. Seria difícil? Não, pois isso já ocorreu durante a epidemia de Yap, mas, por sorte, não ocasionou epidemia na América. Uma jovem médica voluntária permaneceu na ilha de Yap durante a epidemia, na segunda quinzena de junho de 2007. Uma semana após retornar aos Estados Unidos, a jovem apresentou febre e sintomas da doença. A sorologia para vírus Zika deu positiva, ou seja, a médica se infectou em Yap e veio adoecer já em solo americano quando seu sangue apresentou grandes quantidades do vírus. Nesse momento, se fosse picada pelos Aedes americanos, o vírus passaria a circular e permanecer nos mosquitos do novo continente. O Brasil apresenta esse risco, que se eleva enquanto aumenta o intenso tráfego aéreo de turistas e as terras conquistadas pelo vírus na Ásia, Oceania, África e Pacífico.