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Volóchinov em nova chave de leitura | Carlos Alberto Faraco

Valentin N. Volóchinov [1895-1936] é, certamente, um dos pensadores mais injustiçados do século XX. E a razão principal para isso é o fato de que seus dois livros – O freudismo: um esboço crítico (1927) e Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (1929) – foram, sem qualquer prova efetiva, atribuídos, na década de 1970, a Mikhail M. Bakhtin [1895-1975] (cf. Tylkowski, 2010). Esse ato enunciativo gratuito turvou, profundamente, a recepção do pensamento de Volóchinov.

Ainda hoje, há quem perca tempo com essa discussão, posta como um problema não resolvido ou de difícil ou impossível solução, embora, muito claramente, não seja sequer um problema. Se fosse, de fato, um problema, não nos restaria saída possível senão desqualificar moralmente aquelas duas personalidades, que não passariam de dois rematados impostores: um que (irresponsavelmente) assinou e publicou obras que não produziu e o outro que abdicou (irresponsavelmente) de sua “obrigatória singularidade”.

Essa expressão entre aspas é do próprio Bakhtin e retirei, de propósito, da discussão sobre singularidade, responsabilidade, não álibi na existência, impostura, desenvolvida por ele no manuscrito que recebeu, de seus editores, o título Para uma filosofia do ato responsável (provavelmente escrito no início da década de 1920).

Volóchinov em nova chave de leitura
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Ora, as produções intelectuais de Volóchinov e Bakhtin não são, de forma alguma, desprezíveis. Embora distantes de nós em quase um século, não podem ser simplesmente descartadas por quem discute grandes temas da ordem do humano, a começar pela própria questão da linguagem.

Não cabe, portanto, desqualificá-los moralmente, em especial porque todo o imbróglio sobre a autoria dos livros foi criado “por ouvir dizer”. Cabe, sim, respeitar suas assinaturas e singularidades e relê-los em suas especificidades, buscando resgatar o poder heurístico de cada um. Não cabem, obviamente, leituras hagiográficas nem de um nem de outro. E, menos ainda, cabem leituras hagiográficas de um, fabricadas com o propósito (equivocado) de desmerecer o outro. Os dois são autores com suficiente densidade e grandeza intelectual que continuam a nos desafiar com as questões que levantaram e com os quadros conceituais que construíram.

Há semelhanças e congruências entre seus textos? Sem dúvida. Afinal, pelo que sabemos de suas respectivas biografias, conviveram social e intelectualmente por dez anos, entre 1919 e 1929. Ora em Niével, ora em Vitebsk, ora em Leningrado. O próprio Bakhtin afirmou, em carta a V. V. Kozhinov (transcrita em Bocharov, 1994: 1016), que o grupo de intelectuais de que faziam parte compartilhava uma concepção de linguagem, o que é, por si só, mais que suficiente para que parte de suas ideias sejam convergentes. Mas cada autor trabalhou em direções e com ênfases diversas, perpassadas, inevitavelmente, por diferenças conceituais.

Penso que alguns exercícios de leitura podem contribuir para deixar essas diferenças transparentes. É oportuno perguntar, por exemplo, de que modo cada um desenvolveu conceitualmente temas como interação, ideologia, significação. Vale, igualmente, levantar perguntas sobre o papel da linguística no respectivo quadro conceitual. Ou, ainda, sobre as fontes a que cada um deu prioridade; ou sobre como cada qual tratou questões de estética literária.

Há um belo caminho a ser percorrido no estudo contrastivo do pensamento de cada um desses intelectuais. No entanto, para que isso seja produtivo, é preciso, antes de tudo, reler Volóchinov em sua singularidade e integralidade.

Filipe Almeida Gomes, autor deste precioso livro, se pôs precisamente essa tarefa. Mergulhou nos textos de Volóchinov e os leu com lupa na mão, tematizando o lugar da axiologia no seu pensamento. A análise criteriosa e entrecruzada dos textos – hoje, felizmente, disponíveis em boas traduções diretas do russo para o português – lhe permitiu defender, com sólidos argumentos, a tese de que a axiologia (sem esvaziar a relevância do dialogismo) é, de fato, o elemento central, estruturante, do pensamento de Volóchinov em filosofia da linguagem e linguística.

Valentin Volóchinov: a vindicação do axiológico é um texto que está muito longe de paráfrases desgastadas e inférteis. Filipe Almeida Gomes faz uma leitura inusitada e inovadora de Volóchinov, leitura que, por isso mesmo, é muito instigante. Ele interage intensa e criticamente com as formulações de Volóchinov e surpreende o leitor, a cada passo, com densas análises das relações do pensador russo com suas referências. Dentre outras, vale destacar a primorosa dissecação das relações de Volóchinov com o filósofo neokantiano alemão Ernst Cassirer [1874-1945].

Na Segunda Parte do livro, Filipe Almeida Gomes, numa leitura inédita pela profundidade e abrangência, destrinça, com admirável esmero e competência, o quadro analítico desenvolvido por Volóchinov a propósito do discurso reportado. É, sem dúvida, uma contribuição ímpar, dentre várias outras.

Não bastasse isso, Filipe Almeida Gomes acrescenta ainda, como último capítulo deste seu livro, uma análise, ao mesmo tempo surpreendente e brilhante, dos diferentes olhares de Volóchinov e Bakhtin a propósito de Dostoiévski. Ao cabo da leitura desse capítulo, assoma a inevitável pergunta: como foi que ninguém apontou essas diferenças antes?

Ao estudar Volóchinov por meio de uma “problematização renovada” (para usar as palavras do próprio pensador russo, reproduzidas na epígrafe da “Introdução”), o autor deste livro abre um novo momento na recepção crítica das ideias de Volóchinov, desafiando os volochinovianos e bakhtinianos a repensar suas leituras e a redescobrir dimensões heurísticas de um pensamento que esteve, muitas vezes, obscurecido seja pelo imbróglio da autoria, seja por leituras ligeiras e repetitivas.

Carlos Alberto Faraco
Universidade Federal do Paraná

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