Será que a questão da virgindade feminina “já era”?
Para muitos pode parecer um problema superado, mas não é bem assim: inúmeras garotas ainda sentem angústia com a perda da virgindade ou a comemoram – de um modo ou de outro, não há indiferença. Entre amigos, nas redes sociais, na TV, nas escolas, no cinema, nos consultórios médicos, nas famílias o assunto continua vivo. Saber se uma celebridade é ou não virgem ou com quem e como um personagem de romance juvenil vai transar pela primeira vez é tema para várias horas de conversa. Muitos homens ainda hoje valorizam o fato de ser “o primeiro”. Teve gente que até leiloou sua virgindade pela internet e ganhou dinheiro com isso. Há mulheres que procuram clínicas médicas para reconstituir cirurgicamente seu hímen, tentando com isso se valorizar mais perante o sexo oposto. E há também os adeptos do movimento de norte-americano No sex que promove a abstinência sexual. Em muitos grupos, de diferentes convicções religiosas, conservar a virgindade até o casamento é algo fundamental, capaz de criar uma divisão bem nítida entre as mulheres que são ou não aceitas pela comunidade. Como lembra a historiadora Yvonne Knibiehler, em seu livro História da virgindade, isso continua importantíssimo entre os muçulmanos fundamentalistas. São eles que fizeram aumentar (até na França) a demanda pelo “certificado de virgindade”, assinado por um médico para ser exibido aos parentes. Alguns pais até prendem o documento no vestido da noiva para que todos possam vê-lo no dia do casamento.
Claro que o conceito, a percepção e a importância da virgindade, têm historicidade, mudam ao longo da História. Na Antiguidade, entre os judeus, a virgindade, ou seja, a “pureza” das jovens solteiras preservadas do ato sexual até o casamento era uma garantia para o marido de que o filho que nasceria de sua mulher seria legítimo. Assegurar a autenticidade da filiação dessa maneira também era algo fundamental para os gregos e os romanos que acreditavam que as filhas dos cidadãos pertenciam ao pai a quem cabia oferecê-las como esposas para quem bem entendessem. Essas crenças reforçavam a dominação masculina nessas sociedades patriarcais e nas outras que surgiram depois, como, por exemplo, os muçulmanos para os quais, alem da questão do controle das mulheres e da descendência, a satisfação sexual masculina máxima seria a obtida no defloramento de uma virgem. Desde os primeiros tempos da difusão dessa crença, ser “o primeiro” é tão importante para eles que o paraíso de Alá coloca belas jovens virgens à disposição do crente.
O cristianismo, que bebeu nas fontes judaicas e clássicas, trouxe, contudo, uma novidade: a valorização moral e espiritual da castidade como um dos caminhos para a santidade. Isso permitiu a muitas mulheres optarem por se manter virgem para viver sua vida independentemente de marido e filhos; para elas, escolher entrar para um convento e ser “esposa de Cristo” podia significar maior autonomia e oportunidade de estudar. Além disso, durante a Idade Média e a Era Moderna, ser “donzela” dava certo poder; se Joana D’Arc não tivesse se apresentado na corte como virgem, dificilmente teria sido tão ouvida e respeitada. Com tantos significados e tanta importância atribuída à virgindade, violar uma virgem passou a provocar maior excitação entre os homens, como se fosse uma prova de virilidade. Como deflorar uma moça significava desonrar toda a sua família, o pai e os irmãos da jovem procuravam vingar-se do agressor; a vítima não contava, era um assunto de honra entre homens. Só muito mais tarde na História, o estupro seria condenado por sua violência contra a pessoa e as jovens agredidas passaram a ter leis para protegê-las.
A virgindade começou a perder importância social na época do iluminismo, mas o processo foi longo. Em pleno século XX havia uma dupla moral sexual, que permitia aos homens ter muitas experiências sexuais enquanto que as mulheres “de bem” deviam se manter castas e puras. Esses valores perduram até hoje em regiões e mentes atrasadas. Contudo, conforme as mulheres foram tendo mais acesso à educação, aos ganhos econômicos e aos métodos anticoncepcionais, passaram a reivindicar e obter maior igualdade de gênero. Com isso, a liberdade sexual aumentou e o prestígio do hímen diminuiu. Porém, como alerta Knibiehler em seu livro imperdível, nem tudo são flores: aí estão as doenças, a gravidez indesejada, a maternidade irresponsável. O desafio atual é resolver os problemas sem ameaçar as conquistas obtidas duramente pelas mulheres.
Por Jaime Pinsky – historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros – e Carla Bassanezi Pinsky – historiadora com doutorado em Ciências Sociais (Família e Gênero) pela Unicamp e co-autora de diversos livros, entre eles Nova História das Mulheres no Brasil.
Texto excelente! Imprimi para filha de 13 anos levar para escola. Foi tema de redação semana passada.