O fechamento da Constituinte, contudo, não foi um ato no sentido de impedir a organização de uma monarquia constitucional, seguindo os preceitos liberais. D. Pedro I não tinha ambições absolutistas, pois compreendia que esse era um caminho sem volta. Não teria condições de governar sozinho, sem sustentação de pelo menos parte da elite nacional. Essa base de sustentação só existiria se ele se mantivesse fiel ao regime liberal. Em março de 1824, o imperador outorgou uma Constituição. A origem da nova Carta, primeira da história brasileira, contrariava os princípios liberais por ter sido outorgada pelo imperador e não elaborada e aprovada por uma assembleia de representantes eleitos. Mas apesar desse vício de origem, seu conteúdo estava em harmonia com os preceitos liberais.
Na sua maior parte, a Constituição outorgada era igual ao projeto apresentado na Constituinte. O Brasil seria regido por uma monarquia constitucional; os direitos individuais eram reconhecidos; as leis deveriam ser elaboradas por uma assembleia de representantes eleitos. Essa assembleia seria bicameral: uma Câmara dos Deputados e um Senado. Os deputados seriam eleitos para um mandato de quatro anos, os senadores seriam nomeados pelo imperador, mas a escolha deveria recair entre os três nomes mais votados em eleições para esse fim. Seu mandato era vitalício. Essa configuração do Senado era condizente com a concepção de Câmara alta nas monarquias constitucionais europeias.
Uma Câmara alta que não era escolhida diretamente pelo voto da população, no caso das monarquias com cargo vitalício e das repúblicas com mandatos mais longos do que os dos deputados, tinha um fundamento importante para os liberais oitocentistas. Consideravam que uma Câmara assim composta seria uma forma de contrabalançar a outra, a Câmara dos Deputados que, por ser escolhida periodicamente por eleições, poderia se deixar arrastar pelas “paixões populares”. Como seus membros eram vitalícios, não sofriam a pressão dos eleitores, a rotatividade entre seus componentes era baixa, podendo, desse modo, defender o que se esperava fossem posições mais ponderadas, ditadas pelo compromisso com o bem público, pela experiência e pela independência. Na prática, explicitavam a preocupação, no alvorecer dos governos representativos, de impor restrições à participação da população no processo decisório e garantir uma instância de caráter mais conservador do que a chamada “casa do povo”, ou seja, a Câmara baixa, renovada periodicamente por eleições. Essa preocupação estava inscrita nos textos e práticas de liberais europeus e norte-americanos do final do século XVIII e início do século XIX.
Na polêmica questão sobre quem compunha a comunidade nacional, a Carta de 1824 optou pela estratégia contida na emenda antes apresentada por Vergueiro, ou seja, definia como seus membros os cidadãos brasileiros e não os brasileiros genericamente. No espinhoso tema da cidadania dos libertos, definia que apenas aqueles nascidos no Brasil, uma vez libertados, teriam sua cidadania reconhecida.
Em relação aos direitos políticos, a Carta acompanhou o projeto em dois pontos decisivos. Em primeiro lugar, trazia em seu bojo a diferenciação entre cidadania civil e cidadania política. Todos homens e mulheres livres, nascidos no Brasil (com exceção dos indígenas), gozavam de cidadania civil, ou seja, o Estado reconhecia que eram indivíduos portadores de determinados direitos aos quais cabia ao Estado respeitar e proteger. Mas o direito de votar e de se candidatar, a cidadania política, só era concedida a quem preenchesse determinados requisitos. Também nesse item a Carta seguia o projeto de 1823 ao estabelecer critérios como ser homem e livre, ter mais de 25 anos e possuir certa renda. Manteve ainda, como previa o projeto de 1823, que as eleições fossem realizadas em duas fases (não dois turnos). Havia os votantes, cidadãos que escolhiam os eleitores. Uma vez escolhidos estes, eram os eleitores que votavam nos deputados e senadores. Para as Câmaras Municipais, os votantes votavam diretamente nos vereadores.
Os escravos nascidos no Brasil que se tornassem livres e preenchessem os requisitos constitucionais poderiam ser votantes, mas lhes estava vedado ser eleitor ou candidato a deputado ou senador. Seus filhos nascidos livres, contudo, uma vez que preenchessem as exigências da Constituição, poderiam participar das eleições como eleitores e candidatos.
Também não podiam ser eleitores ou candidatos aqueles que não professassem a religião católica, uma vez que a Constituição estabeleceu o padroado, que consistia na inclusão da Igreja Católica na malha institucional do Estado. Não foi, portanto, adotado um Estado laico. Ao contrário.
A Constituição de 1824 manteve a exigência de renda. Para ser votante era preciso ter renda líquida anual de 100 mil réis, para ser eleitor 200 mil réis, para deputado 400 mil réis e para senador 800 mil réis. Também nesse ponto, a Constituição seguia os padrões dos governos liberais do século XIX. Exigir renda ou propriedade era considerado um critério legítimo para garantir o que se considerava ser um eleitorado capaz de tomar as melhores decisões. Além disso, a exigência de renda para ser votante e eleitor era baixa se forem considerados os valores pagos para trabalhadores nas mais variadas atividades. Calcula-se que cerca de 10% da população brasileira tinha direito de voto. Considerado apenas o conjunto dos homens livres, esse número sobe para 50%. Um índice de participação relativamente alto para os padrões da época, superando o dos países europeus.
Outra novidade introduzida pela Carta de 1824 foi a divisão em quatro poderes, ao invés dos três previstos no projeto de 1823. Além do Legislativo, do Judiciário e do Executivo, foi criado também o Poder Moderador. O quarto poder seria exercido pelo imperador e suas principais atribuições eram nomear os senadores, a partir da lista tríplice obtida via eleições, nomear e demitir o Ministério, dissolver a Câmara dos Deputados. Neste último caso, era necessário convocar novas eleições para deputados. O imperador era também o chefe do Executivo, mas este seria exercido pelos ministros. Dessa forma, seria garantida a separação entre os poderes. Como se verá no capítulo “Conflitos e negociação”, o Poder Moderador não comprometia a ação de um parlamento autônomo e o funcionamento do regime liberal. Foi ainda criado o Conselho de Estado. Seus membros eram nomeados pelo imperador e o cargo era vitalício. O Conselho deveria ser convocado toda vez que o imperador fosse exercer uma atribuição do Poder Moderador. Aos conselheiros cabia manifestarem sua opinião sobre os atos do Moderador como, por exemplo, a possibilidade de dissolver a Câmara dos Deputados. O imperador não era obrigado a seguir a posição dos conselheiros. Cabia a ele a decisão final. O Conselho tinha caráter apenas consultivo.
A Carta de 1824 determinava, ainda, que as províncias fossem governadas por um presidente nomeado pelo governo central e por um conselho de deputados eleitos na província, mas cujas deliberações, para se tornarem leis, teriam que ser submetidas à aprovação da Assembleia Geral.
Miriam Dolhnikoff é professora do departamento de História da FFLCH-USP e pesquisadora do Cebrap. É mestre e doutora em História Econômica pela USP. Ensina e pesquisa o Brasil Império. Atualmente estuda o governo representativo, sob a forma de monarquia constitucional, no Brasil, com foco no debate político em torno das eleições. Pela Contexto é autora do livro História do Brasil Império.
Fonte: DOLHNIKOFF, Miriam. “Uma carta outorgada ”. História do Brasil Império. Editora Contexto.