Leia a primeira parte do artigo: Novas gerações, velhas mentalidades e os rumos da política externa brasileira
As ferramentas de política externa e a diplomacia como conhecemos nos dias de hoje remetem suas origens ao século XVII, quando os chamados Acordos de Vestfália determinaram a criação do Estado moderno e do princípio de territorialidade. Até o passado recente, os diplomatas, ao lado de estadistas, tinham praticamente monopólio sobre o processo decisório de política externa, oferecendo os instrumentos necessários para seu planejamento e execução. No Brasil, o Ministério das Relações Exteriores (MRE), conhecido como Itamaraty, é o principal órgão responsável por auxiliar a Presidência da República na formulação e execução da agenda internacional do país.
Em sua origem, as funções essenciais de um diplomata resumiam-se a informar, negociar e representar. E a história demonstra que tiveram muito êxito nestas atividades. Ao longo dos séculos, no entanto, grandes guerras, novas descobertas científicas e importantes ameaças transformaram o mundo radicalmente, sem que as práticas da atividade diplomática fossem capazes de acompanhá-los. Confrontada pela necessidade de redefinição dos limites da soberania estatal e pela participação de novos atores e interesses na arena global, a diplomacia como nossos avós conheceram entrou em grave crise estrutural.
Em parte, tal crise deriva de rápidas e recentes mudanças que ainda não puderam ser compreendidas, e que geram desafios de nova magnitude, para além dos modelos tradicionais de Estado-Nação e prática diplomática. Por outro lado, são resultado da perpetuação de métodos arcaicos, da manutenção de obstáculos à democratização dos processos decisórios globais, da relativa falta de diálogo entre chancelarias e sociedades civis mundo afora e da dificuldade de coordenação entre uma multitude de iniciativas em expansão.
Afinal, o que significa informar, negociar e representar nos dias de hoje?
Qualquer pessoa interessada na crise da Síria, por exemplo, poderá entrar no Google e, em segundos, obter informações atualizadas sobre os mais recentes acontecimentos, sem nenhuma necessidade do auxílio dos tradicionais formuladores de política externa. Para alguém que pretende fazer negócios em outro país, basta enviar alguns emails a potenciais interlocutores e estabelecer contatos diretos, ignorando por completo as estruturas de apoio governamental. Atualmente, qualquer ministério, instituição, organização não-governamental, empresário ou cidadão pode fazer política externa. E, mesmo sem perceber, por vezes o fazem mais do que muitos diplomatas.
A importância da figura do “informante”, contudo, não deve ser desprezada. Necessita, diferentemente, de modernização. Beneficiados por redes de contatos e estruturas de apoio em diferentes países, essas pessoas e redes de contatos têm condições singulares para produzir análises críticas, fazer advocacy e desenvolver reflexões que, quando bem elaboradas, ultrapassam em muito meras reproduções de notícias das mídias locais. Enquanto ficarem restritas à uma pequena elite, pouco servirão para cumprir seu objetivo maior, evitando interpretações equivocadas, polarizações, desinformação e superficialidade de análise sobre temas cada vez mais relevantes.
No que se refere ao aspecto negociador, apesar de os Estados continuarem como atores centrais nos grandes debates internacionais, há muito tempo deixaram de ser os únicos nesse papel. À multiplicação de atores na arena global somou-se o alargamento dos temas tratados e a consequente ampliação da agenda negociadora. Gradativamente, a regulação da coexistência entre Estados expandiu-se para a discussão de questões ambientais, financeiras, jurídicas e sociais, que exigem conhecimentos técnicos específicos.
Nesse novo contexto, os corpos diplomáticos ainda contam com a vantagem de transitar com segurança e habilidade nos ambientes negociadores, de conhecer suas regras não-escritas e de falar outros idiomas. Entretanto, diante de novas demandas técnicas, que dependem de experts para serem encaminhadas, isso deixou de ser suficiente. A aproximação com o mundo técnico e acadêmico é, nesse sentido, necessidade iminente nos próximos anos.
Representação, enfim, continua consistindo em atividade essencial para a agenda externa de qualquer país. Contudo, apesar de Embaixadas e Consulados ainda serem importantes pontos de referência para seus nacionais e interlocutores estrangeiros, cada vez mais dividem essa função com outros atores que, inclusive, possuem capacidade de alterar, em poucos gestos ou declarações, toda a imagem de um país. O maior desafio, plena era global, será renovar a representação para além de círculos elitistas e institucionais, de modo a atingir número cada vez maior de interlocutores, os quais constituirão o verdadeiro motor do processo de integração nas próximas décadas.
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Essas considerações não devem ser compreendidas como sinal de desprestígio da política externa. Reforçam, ao contrário, a necessidade de modernização das práticas de seus decision makers para adequarem-se a uma ordem internacional em transformação, na qual as atividades e funções dos Estados fundem-se com aquelas de novos grupos sociais, permitindo que temas antes restritos à coexistência pacífica entre soberanias expandam-se para a modelagem ativa das condições de bem-estar da própria sociedade mundial.
Ao negociar acordos comercias e de investimentos, formuladores de política externa abrem oportunidades de mercado com impactos concretos nas economias nacionais e na criação de empregos, mesmo que muitas vezes não sejam contabilizados. Por conhecerem diferentes idiomas, culturas e interlocutores, além de estarem muitas vezes presentes no terreno, também estão sempre entre os primeiros a atuar em situações de catástrofes naturais, emergências humanitárias e crises políticas. No caso brasileiro, sem eles nossas fronteiras não seriam as mesmas, o país estaria fora das grandes negociações políticas e comerciais da atualidade, não faríamos parte do MERCOSUL, da Unasul, do BRICS e, muito possivelmente, não teríamos nos tornado um ator global.
Gustavo Westmann é diplomata desde 2007, bacharel em Direito (USP) e em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Diplomacia (IRBr) e em Política Internacional (Luiss). Especialista em Direito Internacional Público pela UC Berkeley e pela The Hague Academy of International Law. Atuou como consultor jurídico na área de direito ambiental e nas áreas cultural, ambiental e comercial do Itamaraty. Foi chefe do setor comercial da embaixada do Brasil na Itália. Atualmente é chefe do setor econômico e comercial da embaixada do Brasil na Indonésia.