Na Alemanha de Hitler prevalecia a ideia da superioridade de uma suposta raça ariana, à qual, evidentemente, pertenceriam os alemães. Para não macular a pureza da raça, nem uma única gota de sangue de outras etnias deveria circular nas veias desses super-homens. O espantoso não são os delírios ridículos, destituídos de qualquer comprovação científica. Ditadores em qualquer latitude têm sido pródigos em sonhos de grandeza que acabam se transformando em pesadelos para o seu povo. O assustador foi o fato de um povo tão culto e informado quanto o alemão ter embarcado em “verdades” como a que garantia que um loiro de olhos azuis, por mais boçal que fosse, pelo simples fato de pertencer a uma suposta raça ariana era superior a gênios como Einstein, Marx e Freud, todos eles de origem judaica.
Manipulação? Sonhos de grandeza enrustidos na alma alemã? Vingança consciente contra um inimigo poderoso? Puro interesse econômico? O que leva uma pessoa, um grupo de pessoas, todo um povo, uma nação inteira a se fanatizar?
Há quem diga que o primeiro passo em direção ao fanatismo é a intolerância. E então, o que leva as pessoas a se tornarem intolerantes? A esposa daquele primo de Goiânia, que parecia tão pacífica, aquela mesma que faz uma broa de milho deliciosa, não está dizendo que tinha que ir todo o mundo para a cadeia, menos os militantes do partido dela? Que se houve algum desvio de dinheiro foi por necessidade política e que isso não é crime? Não está vibrando com a prisão de gente “do outro lado”, estes sim um bando de safados, aliados dos bancos e da grande mídia? Quando perguntei para a Estela (ops, eu não devia revelar o nome dela) se o partido dela não tinha beneficiado e sido beneficiado por grandes empresas ela me pediu pra não fazer mais parada em sua casa para bater papo e tomar café, pois não tínhamos mais nada em comum.
Por outro lado aquele tio em terceiro grau não acha que pobre é pobre porque não trabalha, se trabalhasse ficava todo mundo rico? Não diz que deveriam exigir pós-graduação em administração para qualquer gestor (ele não usa mais a palavra prefeito e governador) e comprovação de independência econômica, já que quem tem dinheiro não precisa roubar? (E não adianta eu dar exemplos de um grande empresário, ladrão notório dos cofres públicos, impedido de sair do país e prestes a coroar sua vida com alguns anos de cadeia).
Temos de tudo por aqui. Os que ainda negam a importância do agronegócio, querendo a volta da pequena propriedade ou até a implantação do kibutz, experiência já abandonada até em Israel. E os que acham que a ação de jagunços assassinos dizimando posseiros e índios é um mal menor, em face da modernidade e dos lucros com a exportação obtida pelas grandes empresas.
Grupos de opinião diferentes se digladiam nas redes sociais. Mais do que argumentos consistentes ou ideologias bem fundamentadas, vemos a intolerância para com o outro manifestada de forma superficial e grosseira. Claro que a rapidez e a facilidade para emitir opiniões ajudam muito; basta acionar o celular com os polegares e o estrago está feito: irmãos rompem amizade, tios viram a cara para sobrinhos, amigos se ofendem e deixam de se falar por muito tempo. Mas não podemos jogar a responsabilidade no WhatsApp ou no Facebook. Por trás das redes sociais, por trás do celular, por trás dos dedos, há um ser humano intolerante, convicto de que as únicas verdades são as suas.
Difícil convencer os donos dos polegares que ouvir o outro, tolerar uma opinião contrária à sua, não implica, necessariamente, concordar com ele ou abrir mão de suas próprias convicções. Confundimos, muitas vezes, tolerância com fraqueza, com complacência. Não tem de ser assim. Tolerar opiniões contrárias às nossas não quer dizer a mesma coisa que tolerar violência, racismo, homofobia. Pois há tolerâncias e tolerâncias.
O intolerante, com frequência, se aproxima e se confunde com o fanático. É aquele que acha que “o outro” é inferior. Em pleno século XXI, ainda existe preconceito e intolerância contra negros, mulheres, homossexuais, imigrantes, migrantes, idosos, praticantes de religiões diferentes das nossas. Ao desenvolver uma intolerância contra “o outro”, o intolerante busca se afirmar como superior, como pertencente a uma maioria imaginária que teria como obrigação marginalizar, combater e até eliminar quem não cerra fileiras com suas ideias, aparência, opção sexual e até time de futebol. A violência é um subproduto dessa atitude.
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.