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Tia Clarita – Jaime Pinsky

Por Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros.

 

Uma tragédia substitui a outra, as imagens precisam ser consumidas, não há tempo a perder. Hoje só se fala do Nepal (não sei se o tema resiste até domingo, quando este texto vai ser publicado), mas ainda ontem noticiava-se a tragédia dos novos imigrantes, que fogem da miséria africana e da guerra civil na Síria. Tem gente que ainda duvida da importância deles para a combalida economia europeia, onde as pessoas estão sem ânimo até para fazer filhos. Lembrei-me dos meus avós, que aqui aportaram nos anos 1920 fugidos dessa mesma Europa. Eram quatro apenas, mas tiveram ao todo 15 filhos, mais de 40 netos, bisnetos que passaram de uma centena e aqui estão como médicos, engenheiros, psicólogos, administradores, empresários, escritores, veterinários, jornalistas, dentistas, e até um historiador. Esta semana morreu minha última tia. Ao homenageá-la quero honrar todos os imigrantes e seus descendentes que escolheram viver aqui.

Quando tia Clarita foi morar em Sorocaba, com a família, juntaram-se os três filhos menores da minha avó Sara: Abrão,  Luiza (minha mãe), e a caçula recém chegada. É verdade que eu já a conhecia de muito antes, mas não podia me lembrar. Afinal, eu não passava de um recém-nascido. Ela me chamou de Jaime (Chaim, Vida, em hebraico), porque eu nascera tão adoentado que só “vingara” por milagre. Assim, Clarita, além de minha tia mais jovem, havia se tornado minha madrinha, algo levado muito a sério por todos que professavam o sincretismo judaico-sorocabano praticado pela família. E levado mais a sério ainda por nós dois, que mantivemos laços estreitos por toda a vida.

Não era difícil gostar da tia Clarita. Ela era dessas raras figuras que sempre optava pelo coração quando este entrava em disputa com a razão. Preocupava-se mais em adivinhar as vontades dos entes queridos do que em calcular o orçamento mensal. Bem antes da existência dos pedagogos da “educação pelo amor” ela praticava esta modalidade com todas as crianças e, particularmente, com os filhos. Para ela não havia nomes, apenas diminutivos afetivos tirados da língua íidishe. Eu era Jaimele, outro Moishele, não faltavam Zisseles (eram quatro) nem Haneles. Outros eram Avramkes, Leikes, Frumkes e ela própria Chaike. Nomes sem diminutivos pareciam duros demais para uma pessoa tão doce como tia Clarita.

E como ela mimava a gente… O cansaço provocado pela subida da rua Hermelino Matarazzo, com a pesada bicicleta Hercules, para chegar até a Bartolomeu de Gusmão número 166, onde ela morava, valia muito a pena. Não só pela recepção carinhosa, nem pela farra que fazíamos com os primos, mas pelos pasteis que a tia preparava, desde a massa fresca até o recheio saboroso. Até hoje eles me provocam água na boca.

Quando uma pessoa querida morre, já com certa idade, tentamos nos consolar pensando na vida longa e boa que ela teve. Não foi bem assim com a tia. Ele teve várias vidas e nem sempre elas foram boas. A primeira foi em Alitus, na Lituânia, ainda criança, quando perdeu o pai e foi criada com a ajuda das irmãs e do novo patriarca da família, tio Arão. Quando a família começou a se arranjar, graças às verduras e ao leite vendidos para um sanatório próximo, o antissemitismo e a visão dos irmãos mais velhos trouxeram  a família para cá. Antes, o norte do Rio Grande do Sul, perto das colônias que o Barão Hirch implantara no Brasil para receber os judeus perseguidos pelo czarismo. A política agrícola do governo transladou quase todos para São Paulo, para uma nova vida. Casamento, filhos, dificuldades econômicas, nada tirou o otimismo da tia, nada afetou sua capacidade de dar e receber amor.

Tia Clarita viveu até a experiência antinatural de perder um filho. Eu a visitei algumas vezes com diferentes netos, ela me lembrava da perda do primogênito, mas logo tentava agradar minhas crianças e contava as façanhas das dela, sempre falando com muito orgulho. Também com muita alegria ela recebia as flores de aniversário que eu costumava lhe mandar, como um bom afilhado deve fazer…

Enfim, a tia soube se reinventar, soube ser ela mesma e soube pertencer a uma família grande e complexa como a nossa, gente com diferentes visões de mundo, universo de valores, formas de praticar a fé.

Algumas pessoas são sós, por natureza. A tia tinha medo de ser só, ela era de companhia. Na Lituânia, minha mãe contava, Tia Clarita chorava de medo dos lobos que uivavam no inverno. Em São Paulo cantava no coral para afastar a solidão.

Tia, você nunca vai ficar sozinha.

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Artigo publicado no jornal Correio Braziliense, em 03/05/2015.

 

 

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