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Somos todos agentes da História | Jaime Pinsky

Seres humanos têm história. A natureza também tem. A diferença é que quando nos referimos ao que aconteceu com as rochas, os vulcões, os rios e os oceanos falamos de história natural; e chamamos de história social quando falamos daquilo que se passou com o ser humano vivendo em sociedade. Por consequência, nada relativo ao comportamento humano é natural, como frequentemente qualificamos atitudes que nos parecem comuns, esperadas. A rigor, deveríamos utilizar a expressão “é social” em vez de “é natural”: a maior parte dos nossos comportamentos decorrem de nossa vivência, de nossa relação com outros membros da sociedade em que vivemos, não são atitudes determinadas pela natureza. Sociedades diferentes induzem comportamentos diferentes. Um terremoto é natural. A água descer da montanha e formar riachos é natural. A prática religiosa é social. A hierarquia, a existência de pobres e ricos, de poderosos e humildes é social.

É verdade que existe uma fronteira ainda não estabelecida com clareza entre o que é determinação biológica e o que é fruto de aprendizagem. Certas habilidades, alguns tipos de inteligência, comportamentos como a agressividade, por exemplo. Esse assunto ainda não foi resolvido pela ciência pois, convenhamos, é muito difícil realizar experiências com gente (mesmo porque a humanidade não quer voltar a monstruosidades como as perpetradas pelo monstro nazista  Dr. Mengele). De qualquer forma, não há dúvida de que comportamento e valores são diferentes em diferentes sociedades e mesmo o correto e o incorreto, o legal e o ilegal variam em diferentes agrupamentos humanos em diferentes espaços e tempos.

Em Atenas, durante o período clássico, era socialmente aceitável certas práticas homossexuais, particularmente quando realizadas por homens mais velhos com garotos na puberdade ou recém saídos dela. Vinte e cinco séculos depois muitas sociedades modernas condenavam e até puniam qualquer manifestação de homoafetividade. Por outro lado em Atenas grande parte da população não tinha direitos políticos. Escravos, estrangeiros e mulheres em geral não tinham direito de voz ou voto na Ágora, onde se praticava a democracia direta e cada cidadão (desde que não fosse criança, mulher, escravo ou estrangeiro) defendia pessoalmente seus interesses e pontos de vista. Nas sociedades modernas todos os adultos são considerados cidadãos, não só uma elite como em Atenas. A cidadania em Atenas era menos inclusiva do que nos países democráticos atuais? Era diferente. O conceito de cidadania, assim como sua prática, é fruto de sua época. Com isso em mente fica mais fácil incorporar a ideia da historicidade dos conceitos e das práticas históricas. Que, não custa repetir, não são naturais. São sociais.

Quando Simone de Beauvoir diz que ninguém nasce mulher, mas se torna mulher, é claro que ela não está se referindo à existência, ou não, de uma vagina, de seios, de barba ou pênis. Ela não está falando de biologia, mas de sociedade. Não pensa em história natural, mas em história social. A mulher (biologicamente falando), ao longo de sua vida, de seus relacionamentos sociais, dos papeis que desempenha transforma-se em mulher (historicamente falando). Da mesma forma, é claro, acontece com o homem. Somos todos determinados socialmente.

Aqui podemos entrar em questões muito delicadas. Se um garoto vive em uma favela (perdão, uma comunidade) onde o Estado praticamente não chega (nem com benefícios, nem com repressão) e acaba sendo cooptado pelo tráfico, tornando-se um bandido, teria sido ele determinado socialmente, não lhe cabendo nenhuma responsabilidade individual pelas suas ações, consideradas crimes pelo Estado? Se um camarada é empresário em uma área em que a propina se tornou um caminho histórico para a prestação de serviços ao Governo e se sua empresa não pode sobreviver sem serviços prestados ao Governo ou às estatais, terá ele um habeas corpus preventivo, um perdão antecipado, uma vez que ele precisa viabilizar sua empresa, pagar seus funcionários?

Se um político faz parte de um partido que apregoa-se preocupar com a desigualdade social no país e sabe que será necessário muito dinheiro para eleger deputados e senadores, o fato de ele aceitar dinheiro de campanha de grandes empresários em troca de favores será um mal, ou um serviço à Nação?

Estes são falsos problemas. Temos nossa história, mas não perdemos abrir mão das escolhas individuais. Cabe-nos usar o livre arbítrio. Não podemos reproduzir aquilo que a ética condena e que é danoso para o conjunto do tecido social. E a Lava Jato está explicando isso muito bem a quem ainda não entendeu.


Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.