A verdade do fanático religioso foi determinada por deus, o seu deus, por meio da revelação. Não se trata de uma grande verdade a que se chega após uma longa trajetória racional, nem de uma pequena verdade, fruto de um achado, um palpite, uma opinião. Trata-se da Verdade (assim, com V maiúsculo), e como tal, não é passível de discussão. Afinal, como simples mortais poderiam questionar verdades com origem divina?
O detentor da verdade religiosa não apenas acredita nela com toda intensidade, como acha que deve impô-la aos outros, aos incréus, aos céticos. No limite, impor uma verdade é uma obrigação do crente, já que ele estará salvando aquele que não acreditava e passa a crer. Ou, se o outro não tiver salvação, punindo-o. Obrigar o outro a acreditar em sua verdade não lhe parece uma atitude autoritária, mas uma obrigação moral. Mesmo que o outro não tenha vontade de receber a sua verdade. Mesmo que seja necessário matar o outro para que não peque mais.
Crimes em nome da religião, de religiões, ocupam muito espaço na história. O próprio mundo ocidental e cristão, que hoje é vítima de fanáticos islâmicos, não tem muitos motivos para se orgulhar das Cruzadas (que sob o pretexto de salvar a Terra Santa dos infiéis matava toda espécie de vida que passava à frente de suas tropas), ou da Inquisição (que em nome da fé mandou para a fogueira um sem número de praticantes de outras crenças, além de dificultar o crescimento das forças produtivas na Espanha e em Portugal).
Alguém poderá argumentar, com aparente razão, que o fanatismo racista de Hitler, ou o fanatismo ideológico de Stalin também provocaram milhões de sacrifícios humanos. Vejo, contudo, muito do fanatismo religioso entre os seguidores desses lideres, que os tinham como verdadeiros deuses. A verdade dos nazistas era dogmática, não racional. Do contrário, como entender que um povo tão evoluído culturalmente como o alemão pudesse ter aceitado nas ideias nazistas que ensinavam que o mais idiota dos loiros de olhos azuis, só por ser ariano (seja lá o que isto possa significar) era de uma “raça” superior a, por exemplo, Albert Einstein, um judeu? O mesmo pode-se dizer dos seguidores de Stalin, que duvidaram durante décadas da imensidão dos seus crimes em nome de um socialismo altamente discutível.
Negar a existência de fanáticos religiosos dentre os autodenominados soldados de Alá é ingênuo. Lá estão eles, matando de forma indiscriminada e contando com uma vida futura plena de alegria para si. Não fosse o seu fanatismo não matariam e morreriam em nome de uma suposta verdade indiscutível: a deles.
Contudo, há um outro tipo social que tem participado dos atentados terroristas perpetrados particularmente na França. Podemos observar que fazem parte da tropa de choque dos agrupamentos de fanáticos de inspiração islâmica grupos ressentidos com o ocidente, não tanto por negarem valores desse mesmo ocidente (apesar de seu discurso nessa direção), mas por não terem tanto acesso quanto gostariam aos produtos e serviços que os cidadãos dos países mais desenvolvidos usufruem. Quando afirmam não serem bem aceitos em sociedades como a francesa não estão clamando pela filosofia de Descartes, poemas de Baudelaire, ou peças de Molière, mas por roupas de grife, automóveis modernos e celulares do ano. “Se não me dão vida boa, também eles não terão vida boa”, parece ser o seu lema. Antigamente a presença de árabes e islâmicos na cultura francesa era importante, mas parece que isto já não ocorre mais e não se pode atribuir apenas à xenofobia essa dificuldade. A tão propalada incorporação dos imigrantes mais recentes à cultura francesa tem se resumido, na maioria dos casos, ao esforço para mudar de patamar de consumo, de preferencia mantendo algumas características do grupo como a discriminação das mulheres. Os que não conseguem se tornar bons consumidores se tornam fortes candidatos a terroristas.
É importante lembrar que desde o começo Hitler foi bastante apoiado pela camada “lumpen” da população alemã, marginalizados, desempregados, desajustados, ressentidos. Gente que saiu batendo em adversários políticos, pichando vitrines de lojas, incendiando templos religiosos, sentindo-se poderosos por fazer parte de um grupo, eles que antes não se sentiam pertencentes a nada.
Fanáticos e ressentidos fazem uma mistura explosiva. Literalmente.
Por Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Faces do fanatismo, entre outros livros.