Após uma década de guerra, Síria é assolada pela fome. País vive severa crise econômica e situação humanitária mais grave que nunca, especialmente em regiões rebeldes. Mais da metade da população não tem acesso regular a alimentos suficientes.
Uma catástrofe dentro de uma catástrofe: a Síria está afundando em um redemoinho de violência e conflitos há uma década, desde a eclosão da guerra civil, em 15 de março de 2011. Há anos que milhões de pessoas não têm o essencial. Após a guerra, vem a fome: mais da metade da população não tem acesso regular a alimentos suficientes mais de 12 milhões de pessoas. Só no ano passado, foram acrescentados mais de 4 milhões de famintos.
Essas cifras foram relatadas no final de fevereiro pelo coordenador de ajuda emergencial das Nações Unidas, Mark Lowcock, diante do Conselho de Segurança da ONU em Nova York. O britânico tinha fatos ainda mais sombrios: mais de meio milhão de crianças sofrem de desnutrição crônica na Síria.
Lowcock relatou que conversou com um médico em um hospital infantil no país, que disse que metade dos leitos estava ocupada por crianças desnutridas. Os pais comeriam menos para ter mais para dar a seus filhos. E eles estariam mandando as crianças trabalhar em vez de enviá-las à escola, por questões de sobrevivência.
Além da guerra, a Síria enfrenta uma grave crise econômica. A libra síria perdeu três quartos de seu valor em 12 meses. Os preços dos alimentos mais do que triplicaram.
Alimentos básicos essenciais só estão disponíveis a preços altos demais, segundo Heiko Wimmen, do think tank Crisis Group. E logo em um país que já foi considerado o celeiro do Oriente Médio, as padarias estão conseguindo vender cada vez menos pão subsidiado. “As pessoas ficam na fila por horas”, diz Wimmen em um telefonema de Beirute, no vizinho Líbano. “Falta gasolina, falta luz, tudo!”, acrescenta.
Ajuda humanitária como arma
Uma das entidades que tentam dar assistência é a organização humanitária alemã Welthungerhilfe. No entanto, atualmente isso só funciona no noroeste da Síria, que é controlado por rebeldes islâmicos. A Welthungerhilfe também gostaria de ajudar o restante da Síria.
“Também queríamos nos registrar na área governada pelo regime”, diz Konstantin Witschel, coordenador de Welthungerhilfe para a Síria. A tentativa fracassou. “O regime nos deu condições que são inaceitáveis para nós enquanto organização humanitária independente e neutra. Nos disseram que deveríamos interromper a ajuda no noroeste do país. Atualmente, estamos fornecendo alimentos, kits de higiene e água potável para meio milhão de pessoas lá. É claro que não podemos abandoná-los.”
“A ajuda humanitária tem sido usada como arma na Síria há anos. Em parte para agradar aliados. Mas também para punir grupos mais afastados do regime”, relata Witschel.
De Aleppo, por exemplo, há relatos de que os fundos da ONU não estão fluindo para as partes mais destruídas da cidade, que eram administradas pela oposição. Em vez disso, a ajuda vai para áreas cujos residentes são considerados leais ao regime.
Maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra
Além disso, quase um em cada dois sírios está refugiado. Mais de 5 milhões no exterior, a maioria está em países vizinhos. Seis milhões e meio de refugiados internos vivem na própria Síria. De acordo com uma análise publicada em 8 de março pela organização humanitária independente Norwegian Refugee Council (NRC), mais de dois terços deles são refugiados há mais de cinco anos.
Só em 2020, quase 2 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar seus lares, segundo o NRC. E cada vez mais, não apenas novas guerras são a causa, mas dificuldades econômicas. “Quanto mais tempo esta crise permanecer sem solução, mais provável é que as dificuldades econômicas se tornem o principal motivo para o surgimento de mais refugiados”, alerta o secretário-geral do NRC, Jan Egeland.
Razões para o colapso
As razões para o colapso da economia são muitas: em primeiro lugar, são dez anos de guerra e destruição de infraestruturas importantes. Também há má gestão e corrupção, assim como colapso do sistema bancário e da economia do vizinho Líbano ocorrido no ano passado. O Líbano era a principal janela para a economia síria e o lugar onde a classe média guardava suas economias. Especialistas dizem que um quinto dos saldos bancários no Líbano pertencia a sírios. Dinheiro que agora faz falta.
E também existem as sanções. A Síria está há muito tempo nas listas de sanções dos EUA, e a UE também vem sancionando o país há dez anos. Em meados de junho de 2020, o governo dos EUA sob Donald Trump intensificou novamente as sanções, com a chamada “Lei César”, nome derivado do pseudônimo de um fotógrafo militar sírio que contrabandeou mais de 50 mil fotos para o exterior documentando os crimes do regime do presidente sírio, Bashar al- Assad.
Pressão máxima
Essas sanções da “Lei César” também penalizam cidadãos e instituições não americanos que fizerem negócios com a Síria. Já em agosto, Dareen Khalifa, analista do Crisis Group para a Síria, afirmou: “A mera ameaça da entrada em vigor da Lei César acelerou a desvalorização da libra síria, desencadeou a hiperinflação e causou, assim, a escassez de alimentos e medicamentos.”
Representantes de alto escalão do governo anterior dos EUA também falam do impacto das sanções em diferentes âmbitos. James Jeffrey, enviado especial da Secretaria de Estado do governo Trump para a Síria, fez um balanço em uma entrevista ao portal Al-Monitor no início de dezembro.
“Aumentamos a pressão para isolar e punir Assad; nos mantivemos na nossa linha de não fornecer qualquer ajuda financeira para reconstrução – e o país está desesperadamente precisando disso. Você vê o que aconteceu com a libra síria, você vê o que aconteceu com toda a economia. Portanto, foi uma estratégia muito eficaz”, afirmou.
Penalidades para ajudantes?
Em 29 de dezembro, a especialista em direitos humanos da ONU Alena Douhan pediu aos EUA que suspendam as “sanções unilaterais que poderiam impedir a reconstrução na Síria”. A relatora especial da ONU reclamou que “o amplo escopo da Lei de Sanções dos EUA (…) pode afetar qualquer estrangeiro que esteja ajudando a reconstruir o país devastado, e até mesmo funcionários de empresas estrangeiras e organizações humanitárias que ajudem a reconstruir a Síria”.
“Já está claro que esse regime de sanções acabará prejudicando a economia como um todo”, admite Heiko Wimmen, do Crisis Group. “Será que devemos simplesmente suspender essas sanções? Ou talvez devêssemos fazer ofertas muito específicas para ‘concessões’ do regime. As quais, claro, não seriam concessões, mas que simplesmente a Síria cumpra padrões humanitários internacionais.”
Assad conseguiu defender seu governo nos últimos dez anos. Mas ele governa apenas um Estado em ruínas – que ele não consegue estabilizar. Nada está se movendo politicamente no momento. Isso ficou claro no início deste ano. O enviado especial da ONU para a Síria, Geir Pedersen, ficou frustrado com o andamento das negociações de que participou em Genebra e disse que seria inútil continuar dessa forma.
O preço da falta de avanço político foi pago pelos civis do país, disse recentemente o presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer. E alertou: “Os sírios não conseguem sobreviver a mais um ano como este, muito menos a mais dez.”
Fonte: DW Brasil