Texto do livro 12 Faces do Preconceito, publicado em 1999 pela Editora Contexto, postado em ocasião do Dia Internacional contra a Homofobia (17/05).
Ser ou não ser não é a questão
Jean-Claude Bernardet*
Na sala de espera de um hospital onde se tratam doentes de Aids, um rapaz aproxima-se de mim e pergunta se pode falar comigo. Sentamos. Ele me explica que está gravemente doente, que vai morrer. Estranho: ele parece forte, é musculoso, tem boa aparência. Pergunto sobre o sangue dele, essas coisas: quantidade de CD4, de CD8, carga viral (quantidade de vírus por milímetro cúbico de plasma); o sangue dele está muito melhor do que o meu, seu estado não está tão ruim como afirma. digo que ele parece deprimido, mais deprimido do que verdadeiramente doen te. Ele confessa que a doença o deixa deprimido. Pergunto se antes de estar doente ele estava deprimido. Ele responde que sim, mas antes era diferente: era uma “depressão existencial”, diz, enquanto agora é a doença que provoca a depressão.
Essa situação é muito mais frequente do que se imagina. A Aids, muitas vezes apresentada como uma trovejada divina que viria restabelecer a moralidade numa sociedade pervertida, pode ser capitalizada pelo doente em seu benefício. Agora sim, ele tem um bom motivo para estar deprimido: a doença. Ele se justifica diante de si mesmo, diante da família, dos amigos. Ele tem uma boa causa. Antes, estava deprimido sem causa, ou sem saber a causa, ou sem querer saber. Na conversa com esse sujeito, entendo que ele não vive bem o fato de ser homossexual, não se sente bem na pele dele, há uma culpabilidade vaga pairando na sua cabeça, ele não sabe muito bem do que se trata, prefere não mexer neste vespeiro.
Esta é uma das piores formas do preconceito contra os homossexuais. Quando os pais, as tias, os amigos dos pais, os colegas da escola, os professores percebem a orientação dos desejos sexuais e afetivos de um jovem ou de uma jovem, organiza-se em torno deles uma verdadeira campanha. O jovem pode até nem se ter ainda dado realmente conta de que se sente atraído por pessoas do mesmo sexo, mas a campanha está aí, martelando. A campanha pode não ser muito clara, inclusive por que os adultos tentam evitar a palavra que soa monstruosa para sua formação moral e religiosa: homossexualidade. de forma que a campanha não é frontal, é insidiosa, ela se insinua. É um professor que, tendo notado que dois garotos andam muito juntos, dá um grito durante um recreio e os manda jogar futebol, ou então lhes atribui carteiras afastadas na sala de aula. É um pai que fica irritado ao perceber que o filho está lendo um romance como O bom crioulo, de Adolfo caminha, ou O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, ou uma antologia do poeta grego Cavafy, e pergunta se não seria bem melhor ler algum romance de aventura. É uma mãe que fica caçando nos bolsos ou nos cadernos do filho ou da filha alguma bilhete comprometedor. São colegas que ficam caçoando porque o fulano não gosta de jogar futebol ou conversar sobre a calcinha da professora. Mas nada disso vem realmente às claras. E se nada disso funcionar, resta o recurso do psicólogo ou do psicanalista: “meu filho, sabe doutor, é um bom menino, mas ele tem um problema…”.
Esse clima mina a segurança do adolescente, que passa a achar que deve ter alguma coisa muito ruim dentro dele. O preconceito manifestado pelos familiares, os amigos, os professores, contamina o adolescente. Ele encampa em parte o preconceito contra ele próprio. Ele se vê dividido entre o prazer de estar com seu amigo, e uma culpabilidade e uma solidão que ele não sabe reconhecer muito bem. Nada disso facilita qualquer forma de afirmação, e encaminha para comportamentos depressivos e para uma vida dupla: precisa esconder, manter aparentemente uma vida como os outros querem e, às escondidas, satisfazer os seus amores e desejos.
Não resta dúvida que, numa situação dessa, precisa firmeza e coragem para se afirmar claramente gay ou lésbica, se aceitar a si mesmo, se fazer aceitar e respeitar pelos outros. O adolescente, cujos desejos se encaminham para pessoas do outro sexo, não conhece essa situação. Não só porque ele não é objeto dessa campanha, como porque a sociedade lhe oferece modelos de comportamento. Os meninos namoram com as meninas, e as meninas com os meninos, os pais fizeram assim, os avôs fizeram assim. O casamento, passando ou não pelas leis e pela igreja, está aí: é só fazer como os outros. O casamento monogâmico e o adultério, os bordéis e as prostitutas: o caminho já está traçado. Os romances, os filmes, a publicidade nos muros da cidade ou na televisão, as telenovelas, tudo nos diz como devemos proceder. É o reino da heterossexualidade. Ao adolescente com tendências homossexuais não se oferecem trilhas prontas, ele tem que encontrar as suas, adivinhar, procurar, inventar. É a luta. E lutar contra essa cidadela armada não é fácil.
Tudo isso se dá como se a heterossexualidade levasse necessariamente à felicidade. É só ver os problemas que casais formados por um homem e uma mulher têm para se dar conta de que a heterossexualidade não é sempre um paraíso.
Tudo isso se dá como se todo mundo soubesse o que é heterossexualidade e o que é homossexualidade. Heterossexualidade se refere a comportamentos sexuais entre pessoas de sexos diferentes, e homossexualidade entre pessoas do mesmo sexo. Mas não vai muito além disso. No quadro da heterossexualidade há múltiplos comportamentos sexuais, afetivos e amorosos. Bem como no quadro da homossexualidade.
Relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo datam dos primórdios da humanidade. Em algumas sociedades, a homossexualidade fazia parte dos costumes aceitos. como na Grécia antiga, por exemplo, vista por muitos gays hoje como o paraíso perdido da homossexualidade. Mas como era essa homossexualidade grega? Os gregos formavam casais constituídos por um homem adulto e um adolescente, frequentemente com a concordância dos pais do adolescente. Mas o adulto não devia se aproveitar do corpo do amante como um objeto sexual, era seu dever contribuir para a sua formação cultural e moral, incentivando nele a coragem e a honra. Quando o adolescente ficava adulto, a relação devia cessar, e o novo adulto podia então manter relações com um adolescente. Isso era, pelo menos, o comportamento socialmente aprovado, o que não quer dizer que tudo ocorria sempre assim. Havia muita prostituição masculina, e os prostitutos pagavam uma taxa ao Estado, bem como as prostitutas. Essa relação adulto-adolescente era codificada. O adulto não devia ser penetrado pelo rapaz. Os adultos que tinham um comportamento sexual chamado de passivo eram desprezados, e havia uma expressão pejorativa para designá-los: bunda larga, o que corresponde mais ou menos ao nosso veado de hoje. Relações sexuais entre dois homens adultos eram condenadas. E tais relações tampouco deviam ocorrer entre dois jovens. Essas práticas sexuais existiam, mas eram malvistas. Então, o que dizer: havia ou não havia preconceito contra a homossexualidade na Grécia antiga?
Os adultos que mantinham relações com adolescentes eram na sua quase totalidade casados e pais de família. E a relação homossexual não entrava em contradição com sua vida familiar. Isto devido a vários motivos. Um deles era que as mulheres gregas eram confinadas nas suas casas, dedicadas à procriação e às tarefas domésticas. “Tenho observado que, com frequência, esse é o destino das mulheres – não somos absolutamente nada”, diz uma esposa numa tragédia de Sófocles. O indiscutível desenvolvimento da homossexualidade masculina apoiava-se em grande parte na discriminação das mulheres. Onde está o preconceito? Preconceito ou organização social?
Felizmente para as mulheres gregas, apareceu a poetisa Safo na ilha de Lesbos, donde foi tirada a palavra lesbianismo. Ela incentivava relações entre mulheres, livres dos homens. As mulheres de Lesbos foram de alguma forma as primeiras feministas.
Como eu disse acima, os adultos que mantinham relações com adolescentes não viam contradições com a vida heterossexual que levavam com suas esposas ou outras mulheres. É que – pasmem – a ideia de homossexualidade não existia na Grécia antiga. Existia a ideia de sexualidade, e um homem normalmente constituído podia sentir desejos sexuais e afetivos voltados tanto para pessoas do seu sexo como do sexo feminino. Não havia uma ideia de exclusividade sexual.
Assim na Terra como no Olimpo: afinal Zeus, patrono dos deuses gregos, era bastante mulherengo, o que não o impediu de se apaixonar loucamente pelo belo Ganimedes e mandar uma águia raptá-lo. E até hoje, ele serve o néctar a Zeus, sob o olhar enciumado de Juno. A Bíblia também conta a história de Davi e Jônatas: “A alma de Jônatas ligou-se à alma de Davi, e Jônatas se afeiçoou a ele como a si próprio”, e quando Jônatas morre, Davi lamenta: “Quanto sofro por ti, Jônatas, meu irmão! Quanto me eras caro e querido! Tua amizade me era mais maravilhosa que o amor das mulheres” (no lugar de amizade, algumas traduções dão amor, outras afeição. Por quê?).
Vimos que a ideia de homossexualidade não existia na Grécia antiga. Quando apareceu tal ideia? Recentemente, segunda metade do século XIX, ela nasce em meio aos médicos. Passa-se a achar que a homossexualidade seria como uma doença, uma disfunção que poderia ser tratada. Em realidade, a palavra homossexualidade não se refere tanto ao fato de que há homens e mulheres que mantêm relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, mas remete a uma certa maneira de encarar a questão. De fato, não existe nenhuma palavra que designe pessoas que têm relações sexuais com outras do mesmo sexo independentemente do momento histórico que se focaliza. Assim como “homossexualidade” tem a marca médica, as outras palavras também têm.
Na Grécia antiga, chamava-se o adolescente que convivia sexualmente com um adulto de eromenos, enquanto o amante era chamado de erastes, e nenhuma palavra designava simultaneamente os dois, embora os dois tivessem relações com pessoas do mesmo sexo. Os samurais japoneses tinham um comportamento sexual algo semelhante ao dos gregos; chamavam-no de shudo. Posteriormente, a palavra sodomita teve muito sucesso. Em certas épocas e lugares, aplicava-se a qualquer forma de atividade sexual que não fosse a tradicional relação homem-mulher; em outras, designava apenas a relação anal entre homens. Não teria o menor sentido chamar o dramaturgo Christopher Marlowe, do Renascimento inglês, de eraste ou de homossexual, ele era considerado sodomita. Da mesma forma Shakespeare, Michelângelo ou Leonardo da Vinci.
Hoje em dia, a palavra “homossexual” sobrevive (até quando?). Mas outro termo tem muito sucesso nesta segunda metade do século XX, é a palavra gay. Temos tendência a considerar gays os homens que transam com homens. Em realidade, esta palavra tem, como todas as outras, a sua história. Ela provém dos Estados Unidos e se desenvolve depois do Stonewall, quando, em 1969, “gays” americanos enfrentam muito seriamente a polícia que invadiu um bar chamado Stonewall em Nova York. Esse combate deu um impulso considerável ao movimento de libertação dos “gays” e teve repercussão mundial, passando a ser um modelo de organização, de afirmação e de comportamento, a tal ponto que ser “homossexual” hoje é ser “gay” ou “lésbica”.
Além da luta dos gays, certamente outros fatores decisivos contribuem para o reconhecimento dos direitos dos e das “homossexuais”. Um deles é o fato de que as sociedades industriais têm gente até demais e não anseiam por novos nascimentos. Outro é a modificação do papel das mulheres nestas sociedades: mesmo que ainda tenham menos poder que os homens, elas estão cada vez mais presentes nos negócios, na política etc. Isso
necessariamente leva a um reequilíbrio da masculinidade, assim como abre possibilidades para as lésbicas.
Então, se o movimento de afirmação dos gays e lésbicas está tão forte atualmente, como explicar que haja homens que transam com homens e se recusam a ser chamados de “gays”, e consideram a palavra como ofensiva? Primeiro, a palavra tem uma indiscutível origem americana, o que incomoda quem se opõe ao imperialismo norte-americano. Segundo, o movimento gay visa em grande parte a integração dos “gays” na sociedade: os gays seriam como todo mundo. E dessa forma, eles se integram no capitalismo e no consumismo.
O movimento gay norte-americano deve parte de sua notável força ao fato de que muitas empresas se deram conta de que, em média, os gays têm um bom nível cultural, empregos e salários razoáveis, dispondo portanto de recursos que nas famílias são canalizados na educação dos filhos. Eles podem assim consumir arte, roupa, turismo etc. Pois bem, muitos homens rejeitam essa integração e querem que sua “homossexualidade” seja uma agressão a uma sociedade que eles rejeitam. Para um dramaturgo e romancista como Jean Genet, ser “homossexual” é ser rebelde, o que exclui qualquer integração numa sociedade de classe, racista, capitalista, consumista, religiosa, como está atualmente constituída a sociedade em que vivemos. Essa rebeldia, esses homens querem mantê-la. Frequentemente, preferem ser chamados e se chamar de bichas ou veados. É o vocabulário do preconceito, da rejeição, do desprezo, mas eles o reivindicam com orgulho para se opor à sociedade que desprezam. O Black is beautiful, como dizem os negros americanos, é semelhante.
Já se disse que a “homossexualidade” é “o amor que não ousa dizer o seu nome”. Atualmente no nosso meio social, ele ousa dizer seu nome, só que não tem palavra para isso. Podemos nos perguntar se precisamos de uma palavra. Os termos, que as diversas sociedades e épocas históricas usaram, visaram sempre criar categorias, classificações. O homossexual é homossexual, como o heterossexual é heterossexual, como o gato é um gato, como a rosa é uma rosa, uma rosa, uma rosa.
Isso coloca a questão da identidade. Existe uma identidade sexual exclusiva? Não existem “gays” que transam com mulheres? Lésbicas mães? casados e casadas que transam com casados e casadas, ou solteiros e solteiras? Existem. E muitos. Em vez de ligar uma palavra, “homossexual” que seja, a uma pessoa, não seria preferível ligá-la a um comportamento? Uma pessoa não poderia ter um comportamento “homossexual” quando se relaciona com alguém do mesmo sexo, e heterossexual quando se relaciona com alguém do outro sexo? As pessoas e seus comportamentos são cambiantes, se transformam, são fluidos, não são como pedras. O que não exclui que alguns ou muitos possam ter um comportamento exclusivamente homossexual ou heterossexual por toda a vida. Mas o furor classificatório já achou uma palavra: quem transa com os dois sexos é bissexual, o que satisfaz o dicionário. Este é um preconceito, o medo de não controlar as pessoas e seus comportamentos pelas palavras, o medo de que a fluidez dos comportamentos possa escapar ao policiamento linguístico, e portanto moral, psicológico e médico.
* Jean-Claude Bernardet é professor da ECA-USP, autor de ensaios sobre cinema e de romances e roteirista cinematográfico.