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Repensando o Círculo de Bakhtin: novas perspectivas na história intelectual

CAPA REPENSANDO BAKHTIN_WEBO Círculo de Bakhtin é conhecido pela sua importância para os estudos da linguagem. Considerado um grupo revolucionário e inspirador pelas ideias difundidas pelos intelectuais que o formavam, é também uma grande fonte de indagações para os pesquisadores da área. Muito tem sido publicado sobre o grupo no Brasil, mas só agora a abordagem crítica de Craig Brandist, um dos maiores especialistas do Círculo na atualidade, chega aos leitores.

Fruto de pesquisas em diversos arquivos russos, este livro trata do contexto intelectual e histórico dos trabalhos do Círculo, com riqueza de informações e discussões sobre filosofia da linguagem e sociolinguística soviética. O resultado é um olhar sobre o trabalho do Círculo sob uma nova luz, que põe em questão algumas das “certezas” sobre a figura intelectual de Bakhtin.

 

 

APRESENTAÇÃO

Os artigos que compõem a presente coletânea foram originalmente publicados entre 1999 e 2008. O primeiro data de um período em que eu, como um pesquisador pós-doutor relativamente jovem, estava trabalhando, na Universidade de Sheffield, Reino Unido, em um projeto para investigar os contextos do trabalho do Círculo de Bakhtin. Essa era uma boa continuação para o que eu havia realizado em minha tese de doutorado, uma das primeiras tentativas sistemáticas de examinar as fontes das ideias do Círculo. Desde o início dessa pesquisa, o campo avançou consideravelmente, com muitos pesquisadores dando importantes contribuições para o entendimento das ideias de Bakhtin, Voloshinov, Medvedev e outros membros do Círculo. A imagem que temos atualmente desse grupo de estudiosos é bastante diferente das idealizações suavizadas da década de 1980, quando muitos de nós fomos atraídos pelas personalidades que encontrávamos nas primeiras traduções (frequentemente repletas de graves falhas) e esboços biográficos hagiográficos. Como muitos ocidentais que conheceram os trabalhos do Círculo na década de 1980, fui atraído por suas ideias porque elas lidavam com as mesmas questões que, na época, eram tendências de pensamento em voga, mas de uma forma que me pareceu muito mais responsável. Em lugar da celebração do relativismo, indeterminação e ambiguidade que dominava
a teoria cultural no final da década de 1980, com as ideias pós-estruturalistas e pós-modernas em ascensão, ali apareciam trabalhos provenientes de uma versão não stalinizada do marxismo e bastante compatíveis com ele. Inevitavelmente, minha avaliação da relação entre essas tendências mudou ao longo dos anos. Por estar muito interessado na história do início da época soviética, aprendi russo e busquei meu objetivo com algum entusiasmo e persistência, passando dois anos na Rússia, no início da década de 1990 e, desde então, fazendo visitas regulares a esse país. Sempre suspeitei que as reivindicações da autoria de Bakhtin para trabalhos explicitamente marxistas, publicados sob os nomes de Voloshinov e Medvedev, fossem motivadas ideologicamente e, quanto mais eu trabalhava nos textos originais, maior se tornava minha suspeita. Encontrei práticas autorais diferentes e argumentos divergentes, apesar dos pontos de convergência óbvios e significativos, e me pareceu que tínhamos ali um grupo de estudiosos dialogando entre si. Penso que isso foi comprovado por pesquisas subsequentes. Entretanto, não tinha uma real consciência dos vários grupos intelectuais aos quais pertenciam os diferentes membros do Círculo de Bakhtin nem de como toda a noção de haver um Círculo de “Bakhtin” era, na verdade, problemática. O que hoje, na ausência de uma expressão melhor, chamamos de Círculo de Bakhtin é, na verdade, apenas um ponto no qual diferentes pensadores se intersectavam e não é de modo algum certo que, para qualquer dos participantes, esse fosse o mais importante dos agrupamentos a que eles pertenciam. Somente após muitos meses de trabalho nos arquivos das instituições nas quais essas personalidades trabalharam tive essa percepção.

Na época em que realizei a maior parte de minha pesquisa arquival, meu foco não era mais o Círculo e eu não estava tão convencido da pan-originalidade do trabalho de seus membros, especialmente das alegações feitas a respeito do próprio Bakhtin. Com o foco em outro lugar, a independência de Voloshinov e Medvedev tornou-se muito mais clara e houve uma percepção maior de que eles levaram algo para as discussões do Círculo que Bakhtin não apenas não podia fornecer, mas com o qual ele aprenderia. Entre minhas primeiras explorações históricas das ideias e o trabalho arquival, diversos pesquisadores, eu inclusive, escavaram as fontes de ideias de Bakhtin que antes se pensava serem de sua própria autoria. Ficamos sabendo, também, que Bakhtin não era o personagem idealizado em que havíamos sido levados a crer: seus empréstimos frequentemente ultrapassaram os limites que aceitaríamos de estudantes de graduação e, às vezes, poderiam com justiça ser chamados de plágio. É claro que existiam circunstâncias atenuantes, mas isso é algo que não encontramos em Voloshinov e Medvedev. Descobriu-se que Bakhtin mentiu sobre seu passado em várias ocasiões, e somente alguns desses casos podem ser explicados pelo que sabemos das circunstâncias. Contudo, ao contrário das recentes asserções de determinados pesquisadores suíços, isso não faz dele um charlatão mais do que as concepções hagiográficas anteriores fizeram dele um santo. O que vemos é que um grupo de pensadores muito mais interessante estava surgindo, encravado nas condições de seu tempo e época, e não figuras heroicas e excepcionais. Desmistificar não é o mesmo que desmascarar.

Como acontece com qualquer coletânea de artigos escritos ao longo de um período, ela contém trabalhos que não seriam escritos hoje e, se fosse escrever um artigo sobre qualquer desses tópicos específicos, ele seria, com certeza, muito diferente. O distanciamento é um aspecto, assim como a perspectiva alterada dada por trabalhos meus e de outros autores realizados nesse ínterim. Os artigos mostram como, em vários pontos, me envolvi com as ideias do Círculo de Bakhtin, busquei entendê-las quanto às suas fontes e avaliá-las em relação ao que eu podia ver a partir de um ponto de observação muito diferente. O leitor, sem dúvida, fará o mesmo ao ler estes artigos e terá razão. Significativas mudanças de perspectiva ocorreram ao longo do período em que os artigos foram escritos, sendo importante a compreensão de que, enquanto eu havia abordado os trabalhos de Bakhtin inicialmente pensando que eram intervenções materialistas, eles, na verdade, revelaram-se a obra de um filósofo idealista. Desse modo, embora contenham numerosos insights e formulações valiosas, os trabalhos foram também marcados por formações transigentes, nas quais certos aspectos não foram levados em consideração. Talvez as mais óbvias sejam Bakhtin ter excluído o surgimento de uma classe média educada e da indústria da publicação ao moldar o romance como um gênero e a forma pela qual mesmo as formas do enredo, digamos, dos romances de Dostoiévski, foram afetadas pela maneira como foram publicadas em episódios, em periódicos, os assim chamados “tabloides”. Não vou explorar o assunto aqui, porque já escrevi sobre isso em outro lugar. É suficiente dizer que, no contexto da urss da década de 1930, refugiar-se no idealismo quando se está cercado por um positivismo reducionista mascarado de marxismo é, no mínimo, compreensível. Como observou Marx em Teses sobre Feuerbach (1845), quando o materialismo torna-se mecânico, o lado ativo é desenvolvido pelo idealismo e, é claro, isso significa que há algo valioso embutido no próprio idealismo.

O primeiro trabalho da coletânea trata precisamente dessa questão. A perspectiva de Bakhtin sobre o Renascimento é, ao mesmo tempo, reveladora e limitada. Ela recorre a uma série de fontes geralmente não reconhecidas e apresenta uma narrativa que de modo algum era original, mas Bakhtin vai além de suas fontes, construindo, a partir de seus aspectos produtivos, uma nova maneira de pensar a história da cultura literária dessa época. Entretanto, importantes características das formações sociais discutidas não são levadas em consideração, o que significa que precisamos tratar o trabalho de Bakhtin com cautela e ir além de suas limitações, exatamente como ele parcialmente transcendeu suas próprias fontes.

Uma área na qual desenvolvi perspectivas sobre o trabalho do Círculo que ainda não tinham sido utilizadas anteriormente foi trabalhando a questão da natureza da atividade discursiva. Dois dos artigos da coletânea contêm uma cuidadosa consideração das fontes da concepção de Voloshinov sobre o enunciado e como isso foi posteriormente desenvolvido por Bakhtin. Em “O dilema de Voloshinov” rastreei as fontes da teoria de Voloshinov, inclusive dois dos mais importantes e subestimados escritores que trataram da atividade discursiva, Anton Marty e Karl Bühler. Voloshinov refere-se a ambos e estava até mesmo traduzindo um artigo deste último. Um exame mais apurado leva-nos a ver que o núcleo da ideia do enunciado pode ser encontrado em seus trabalhos. A contribuição de Voloshinov foi sociologizar a ideia e, ao fazê-lo, fornecer uma estrutura de acordo com a qual a inicial fenomenologia dos atos subjetivos e suas ideias sobre a relação entre autor e herói puderam ser remodeladas como interação dialógica. Surgem diferenças específicas entre a abordagem ambivalente de Voloshinov à relação entre os reinos discursivo e extradiscursivo e a desconsideração que Bakhtin dá a esse último. Aqui, temos a distinção central entre a fenomenologia “realista” subjacente à concepção de enunciado e o neokantismo de Bakhtin, de acordo com o qual o objeto do conhecimento é produzido por e no pensamento.

Em certo sentido, Bakhtin continuamente tentou subordinar o primeiro ao último, mas nunca foi capaz de consegui-lo completamente. Com frequência, acho esse o aspecto mais interessante do trabalho de Bakhtin e ele é um exemplo da forma pela qual não é necessariamente o lado mais harmonioso e completo do trabalho de um pensador que é o mais valioso, e sim como podemos aprender com a maneira pela qual um pensador trabalha determinados problemas. Em “O direito e os gêneros do discurso” exploro como a adesão de Bakhtin à ideia da Escola de Marburg, de que as ciências humanas são baseadas na ética e a jurisprudência é sua “matemática”, interage com sua teoria do enunciado, com algumas implicações fascinantes.

A partir de 2003, o Círculo de Bakhtin deixou de ser o centro da minha pesquisa, embora eu tenha tentado me manter atualizado com os trabalhos no campo e inevitavelmente realizasse minhas novas investigações sempre com o Círculo no fundo da minha mente. Certa vez, preparei material para algumas conferências e publicações que enfocavam o Círculo e penso que esse material nos ajuda a ter uma visão mais precisa do lugar do Círculo em seu contexto histórico. Um resultado desse novo foco foi meu estudo em 2007 exatamente sobre por que as ideias do Círculo e do psicólogo Lev Vygotsky pareceram semelhantes a muitos estudiosos. A razão disso, eu descobri, foi não apenas o fato de que Bakhtin, Voloshinov e Vygotsky frequentemente leram os mesmos livros, mas que Voloshinov e Vygotsky também realizavam projetos de pesquisa coletivos em instituições com objetivos compartilhados. Entretanto, o neokantismo de Bakhtin e a adesão de Vygotsky às principais ideias de Spinoza tornaram suas orientações filosóficas incompatíveis. Tais diferenças exigem que os estudiosos que desejam empregar as ideias dos dois abordem a implicação dessa divergência, em vez de ficar satisfeitos em combinar características que só superficialmente são semelhantes.

A originalidade de Bakhtin indubitavelmente foi exagerada quando se trata de seu trabalho sobre a estratificação social da linguagem [A teoria do romance]. Atualmente, fica claro que o estudo da linguagem no início da urss fez avanços significativos exatamente nessa área. Não apenas Bakhtin teve conhecimento e foi influenciado por essas concepções, mas a maior parte dos trabalhos importantes nesse campo era desconhecida além de um pequeno círculo de especialistas. Havia razões históricas para isso, sendo uma delas a intervenção de Stalin na linguística, em 1950, dentro da urss, e outra, a lógica dos estereótipos da Guerra Fria sobre os estudos soviéticos, fora da urss. Embora Bakhtin frequentemente seja apresentado como uma heroica exceção às tendências predominantes no início dos estudos soviéticos, nessa área, parece que ele estava bem inserido na tendência dominante. Em “As origens da sociolinguística soviética” (2003), delineei as principais tendências na área e argumentei que a sociolinguística que se desenvolveu nos eua, na década de 1960, não foi menos condicionada pelas circunstâncias sociopolíticas e ideológicas que aquela desenvolvida na urss, na década de 1920. Em certos aspectos, as teorias soviéticas podem ser consideradas mais produtivas. Um entendimento desses trabalhos é importante ao avaliar o que, exatamente, Bakhtin acrescentou, se é que acrescentou, a essa área e o que tais ideias trazem para seu trabalho sobre o romance.

Os dois artigos restantes colocam o trabalho do Círculo de Bakhtin no contexto das instituições nas quais a maioria deles trabalhou nas décadas de 1920 e 1930. Em minha contribuição de 2005 à conferência sobre Bakhtin, na Finlândia, mostrei como Voloshinov e Medvedev estavam engajados em projetos dentro de instituições em Leningrado que tinham uma relação direta com suas próprias publicações e, subsequentemente, com os trabalhos de Bakhtin. O projeto de desenvolver uma poética sociológica foi central tanto para o Método formal de Medvedev como para o Marxismo e a filosofia da linguagem de Voloshinov, e fica bem claro a partir de material arquival que ambos eram especialistas reconhecidos em seus campos. Eles trouxeram ideias que desenvolveram em seus projetos institucionais para as discussões do Círculo e levaram ideias das discussões do Círculo de volta para seus institutos. Isso também permitiu que Bakhtin traduzisse suas ideias iniciais sobre autor e herói para os termos dos projetos de pesquisa da época e, então, publicasse o estudo resultante sobre Dostoiévski na mesma série institucional de monografias que seus colegas. O próprio trabalho dentro do instituto foi precursor em algumas áreas e Bakhtin continuou recorrendo às ideias desenvolvidas por outros estudiosos do instituto, principalmente Lev Iakubinski, Viktor Zhirmunski, Olga Freidenberg e Izrail Frank-Kamenetski, em sua obra sobre o romance da década de 1930. O artigo de 2008, “Linguística sociológica em Leningrado”, apresenta uma visão geral dos estudos linguísticos no instituto, fornecendo referências incidentais sobre o lugar de Voloshinov e Medvedev e é suplementado por um resumo do trabalho que Voloshinov estava realizando no instituto na década de 1920.

Juntos, os artigos mostram como meu trabalho foi desenvolvido, mas espero que eles também apresentem o trabalho do Círculo de Bakhtin sob uma nova luz. Obviamente, é importante entender como um pensador olhava para o mundo e definia o objeto de sua pesquisa, mas também é importante sair da esfera da pessoa estudada e ver o que estava disponível a ela, levando em consideração as áreas de que tal pensador desviou os olhos. Bakhtin certamente tinha seus pontos cegos e aqueles que estudam seu trabalho também têm os seus, eu inclusive. Há, geralmente, algo valioso e único em cada ponto de vista e esse deve, talvez, ser nosso ponto de partida. Entretanto, não é aí que a pesquisa termina.

 

Craig Brandist
Helsinki, março de 2012

 

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