ALGUM TEMPO ATRÁS, passando por um treinamento sobre consultoria, um dos professores, made in Fundação Getúlio Vargas, fez uma pergunta no mínimo preocupante. A certa altura ele sapecou nada menos que um torpedo do tipo “Quem aqui lê 40 livros por ano?”. Sentados em nossas cadeiras, desconfortáveis com a interrogação, tínhamos a vontade de nos esconder ou sair correndo, não necessariamente nessa ordem.
Conformado com o quadro que revelava sintomas de pouca intimidade com os livros, propôs um negócio menos exigente: “Tudo bem, e 30, quem lê?”. Resposta: “nada a declarar”, dizia aquele silêncio que enchia de um tormentoso barulho as nossas cabeças.
E o consultor baixou suas expectativas para 20 livros. O que também resultou na mesma reação típica das perguntas anteriores. Até que demonstrou se dar por satisfeito caso alguém ali dissesse algo em torno de 5 a 10 títulos. Alguns braços levantados, timidamente surgiram uns poucos acenos positivos.
Foi quando concluiu destacando que não apenas os consultores precisam ler no mínimo 5 bons livros por ano. De outra maneira, segundo ele, seremos apenas iguais à média, um “eu também” no meio de uma multidão em busca de um destaque no mercado, que certamente nunca chegará.
Preocupante. Definitivamente preocupante a observação do professor. Porque diante da pilha de livros que repousa – mentira, uma pilha de livros nunca repousa, ela apenas finge-se de morta – sobre nossa mesa, sentimos o peso do débito que temos atrás de nós, sem que nada interrompa seu crescimento.
Tudo bem, podemos negociar a dívida. Talvez uma proposta de parcelamento, quem sabe, com um contrato de assiduidade. Algo como ignorar a cama feita e o sono que insiste em nos aliciar. Dar pouca importância ao relógio, quando nos avisa que já passamos para o outro dia e estamos bem longe da fronteira que separa o ontem do hoje. E também tem os sábados e os domingos. E os feriados. E os dias santos de guarda. E o intervalo comercial, durante o jornal, a novela, o filme, etc. Tive um professor, exegeta de primeiríssima linha, para quem o tempo de um break comercial era o espaço ótimo para ler mais alguns versículos do Novo Testamento, presença absoluta em seu previsível paletó preto. Será por isso que à época ele assessorava nada menos que o Cardeal Arcebispo de São Paulo, já havia publicado vários livros e sua agenda lembrava uma Avenida 23 de Maio por volta das 17h? Destino ou sorte, isso eu sei que não era.
O problema aí é o velho paradigma, segundo o qual fomos feitos para produzir de segunda a sexta, no horário comercial. Essa verdade, que nos torna prisioneiros das ciladas que cultivamos sempre que não podemos inventá-las, tem algo de demoníaco. Principalmente porque ela nos é inoculada no mais profundo de nossa mente, envolta numa embalagem feita de “esperteza”.
Quem nunca ouviu alguém dizendo que sempre estudou ou trabalhou, sim, mas nunca foi um CDF? E o pior: narra-se o fato como se ostentasse a maior das conquistas de que alguém é capaz – motivo de orgulho supremo. Nem um, nem outro. Na verdade, mais uma derrota. Algo como se dizer vitorioso porque fez uma “viagem” ao consumir droga ou por ter dado um tiro no próprio pé.
Resultado: aprendemos e ensinamos a ter vergonha de atitudes como persistência, determinação e coisas do gênero. Certos de estarmos fugindo das estruturas que nos aprisionam, sem perceber nos tornamos CDFs da incompetência institucional. O que, sem dúvida, é ainda mais trágico.
Algumas pessoas chegam lá. Destino? Sorte? Não. Trabalho e vontade.
RUBENS MARCHIONI é palestrante, publicitário, jornalista e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Autor de Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected] — http://rubensmarchioni.wordpress.com