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Quem é mesmo Paulo Freire? | Ronai Rocha

Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire (Editora Contexto) foi publicado em agosto do ano passado. Nesse período, apresentei o livro em muitos lugares e sempre fui bem recebido e escutado. Os convites para essas palestras vieram de pessoas que eu conhecia da vida acadêmica e isso eventualmente criou um ambiente para questionamentos muito polidos. Grande parte das discussões disseram respeito ao subtítulo do livro, um tema vasto e delicado ao qual nunca é demais voltar.

Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire Em Quando ninguém educa eu procuro compreender melhor alguns aspectos da pedagogia brasileira e da formação de professores a partir dos anos 1960. Para isso precisei avaliar a presença de Paulo Freire e das pedagogias vizinhas a ele. Meu interesse central recaiu sobre a Pedagogia do oprimido, o texto mais citado nos cursos de formação de professores. Eu havia lido o livro nos anos 1970 e não recordava muita coisa para além da polarização entre as pedagogias “emancipatórias” e “bancárias”. Foi com surpresa que descobri uma imensa teia de referências somente compreensíveis a partir da reconstituição dos horizontes conceituais dos anos 1960. Entre esses aspectos estão os conflitos que surgiam nas esquerdas, em um espectro que começava com o cristianismo, passava pelas mais variadas versões do marxismo (leninistas, castristas, guevaristas, maoístas, etc.) e chegava ao nacional-desenvolvimentismo (isebianos, cepalistas, etc.). Pedagogia do oprimido queria encontrar um caminho entre o autoritarismo das esquerdas (e das direitas) da época, mas terminava batendo no cravo e na ferradura, pois seu autor encerrava o livro beijando uma cruz que tinha como mastro o dogma leninista da vanguarda revolucionária, e como braço a revolução cultural maoísta; mesmo assim, Paulo Freire não abria mão de proclamações cristãs de respeito ao povo. O livro é um ferro de madeira.

Na primeira oportunidade em que apresentei publicamente meu livro, alguém me questionou dizendo que minha compreensão de Paulo Freire era parcial, porque em Quando ninguém educa eu abordei apenas um livro dele. Não esqueci essa objeção e isso me obrigou a ler toda e cada linha escrita por ele. Esse foi o gatilho para começar a me perguntar, cada vez com mais intensidade, sobre quem é mesmo Paulo Freire.

Essa questão, “quem é Paulo Freire?”,  foi surgindo aos poucos e hoje me parece incontornável. A primeira coisa que me dei por conta, depois que li os principais livros sobre a vida e a obra dele, é que não há até hoje uma única biografia de Paulo Freire digna da importância a ele atribuída. Os estudos hagiográficos feitos por amigos e pela segunda esposa pouco contam, pois repetem os mesmos fatos, com poucos detalhes e contextos. Essa situação envolve muitos episódios de uma história sempre parcialmente contada: a origem e o enviesamento do método de alfabetização, as versões românticas sobre os 300 de Angicos, o abandono do nacional-desenvolvimentismo isebiano e a súbita conversão para o marxismo-leninismocristianismo, a adesão escancarada ao maoísmo e o brutal silêncio posterior sobre isso, a reconversão cristã-suíça, as relações crispadas com outros exilados, os sucessos e os fracassos na África e nos Estados Unidos, o progressivo aliviamento marxista: pouco ou nada disso é tratado pelos porta-vozes da indústria freiriana.

 Um ano depois, minha conclusão é que entre as versões oficiais sobre sua vida e obra e um paciente trabalho de história ainda não realizado predomina um oficialismo disfarçado, sustentado por uma legião de simpatizantes. Contam-se nos dedos de uma mão os estudos que passam por um crivo crítico, como os textos de Vanilda Paiva.

Em Quando ninguém educa sugeri que há um pequeno paradoxo em torno de Pedagogia do oprimido:  é um livro famoso e muito citado, mas pouco lido e menos ainda compreendido. Sua leitura costuma ser descontextualizada e seletiva, mas esse procedimento parece ser deliberado e decisivo para a industrialização de Paulo Freire à esquerda e à direita. A esquerda transformou-o em autoajuda pedagógica e utópica, a direita quer que ele seja responsabilizado pela nossa crise educacional. No fim das contas, há pouca leitura séria para além dessas que buscam pretextos para uma coisa e outra.

A natureza melancólica dessas observações acentua-se um pouco mais diante do fato que ele mesmo reconheceu a historicidade de Pedagogia do oprimido. Mais do que isso, ele soube receber as críticas feitas pelas feministas norte-americanas e tentou dar uma resposta a elas, abordando a questão da historicidade de seu texto. O livro foi acusado de tratar da opressão de uma forma muito universalista e de ter ignorado a especificidade de opressões de raça e gênero. Mais do que isso, o livro foi qualificado como sexista e falocêntrico. Paulo Freire enfrentou essas objeções por meio de observações que são extremamente relevantes até hoje para uma apreciação crítica de sua obra.

Em primeiro lugar, ele indicou o que poderíamos chamar de dimensão passiva e receptiva no trabalho intelectual. O intelectual surge em um espaço de formação que é decisivo na orientação de seus primeiros passos. No caso de Paulo Freire, isso é notório, pois seu surgimento como intelectual se deu a partir do nacionalismo-desenvolvimentista isebiano, de um lado, e do catolicismo social de matriz francesa. Sua conversão ao marxismo somente aconteceu depois do exílio. É exatamente a essa conversão que ele se refere na resposta às feministas, pois para enfrentá-las ele invocou a atmosfera intelectual que respirou durante a escrita do livro: “Durante os anos 70 (…) eu era mais influenciado pela análise marxista, particularmente pela análise de classe. Quando escrevi Pedagogia do Oprimido estava muito influenciado pela análise de classe de Marx”. Essa afirmação confirma a origem de alguns dos conceitos que o influenciaram naquele período.

A explicação sobre o sexismo é mais esclarecedora: “Eu não escapei dos poderes envolventes de uma cultura altamente sexista no meu país.”

Temos então duas formas de passividade: a primeira diz respeito à escolha dos instrumentos conceituais disponibilizados no reservatório intelectual à nossa disposição; a outra é mais geral e remete para a imersão no ambiente cultural onde nascemos.

O segundo movimento de Paulo Freire na estratégia de enfrentamento das críticas feministas é dizer que “o que está errado é criticar um autor ou uma autora usando mecanismos que a história não havia dado a ele ou a ela. Eu escrevi Pedagogia do oprimido há vinte anos.”

Surge aqui o apelo a um sentido forte da expressão “contexto histórico”. Essa autora, diz ele, “não contextualizou Pedagogia do oprimido em seu contexto histórico. (…) Acredito que o que uma pessoa precisa fazer é apreciar a contribuição do trabalho inserido em seu contexto histórico”.

Trata-se uma defesa razoável. Paulo Freire irritou-se com as feministas: “O que eu acho absurdo é ler um livro como Pedagogia do oprimido e criticá-lo porque o autor não tratou de todos os temas de opressão potencial de forma igualitária”.  As leituras feministas são qualificadas como “absurdas” não apenas porque exigem que fale de outras formas de opressão que não apenas as de classe, mas também porque elas falharam em cumprir uma regra de responsabilidade da leitura. Freire formula esse ponto também muito claramente:  “Os(as) leitores(as) têm alguma responsabilidade em colocar meu trabalho inserido nesse contexto histórico e cultural: isto é, a pessoa lendo Pedagogia do oprimido como se tivesse sido escrito ontem, de alguma forma descarta a historicidade do livro”.

Agora bem: em que consiste a “historicidade” da Pedagogia do oprimido? O leitor é levado a pensar que o problema reside no centramento do livro no conceito de classe social e em não ter avançado para os temas de opressão de gênero, raça e outros. Do ponto de vista do feminismo em voga nos Estados Unidos, a Pedagogia do oprimido era um livro limitado pois estava fixado no conceito de dominação de classe e com isso ficava aquém das expectativas do ativismo da época. Os oprimidos da Pedagogia  têm pouca concretude diante do ativismo americano dos anos 1970.

A resposta de Freire, o seu apelo à historicidade, consistiu em lembrar que ele aprendeu a escrever naquela forma sexista e que sua experiência de vida não lhe proporcionou outra; e o seu espaço de formação intelectual, o reservatório de onde saiu seu repertório, não lhe colocou prioritariamente o problema da opressão de raça e gênero. Em resumo, ele não poderia ser acusado de não falar do que as ativistas queriam; e cada um de nós deve  pagar um preço pela inscrição linguística que foi parafusada em nossos ossos.

Essa historicidade reconhecida por ele é suficiente para dar sentido às perguntas que precisamos fazer sobre a diferença entre o que pensamos saber e o que de fato aconteceu nesse cenário dos anos 1960 que são parte essencial de nossa história pedagógica e política. É preciso levar a sério o pedido feito por Freire às feministas: temos que contextualizar a Pedagogia no oprimido. Antes de ser um livro sobre pedagogia e opressão, é antes de tudo um documento de época sobre as alternativas das vanguardas políticas de esquerda. O livro tinha como pano de fundo o complicado mundo político e ideológico brasileiro dos anos 1960 e envelheceu brutalmente.

Enquanto Paulo Freire for lido de forma descontextualizada e celebrado em tom hagiográfico, as narrativas sobre ele, à esquerda e à direita, serão pouco mais que mitologias. É preciso mais trabalho crítico se queremos conhecer melhor Paulo Freire e as pedagogias dos anos 1960.


Ronai Rocha é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde foi pró-reitor de graduação. Desde o início de sua vida profissional pesquisou temas ligados à educação.


· Todas as citações de Paulo Freire que faço nesse texto foram retiradas da entrevista que ele deu para Donaldo Macedo, publicada no volume organizado por Peter McLaren, Peter Leonard e Moacir Gadotti, Paulo Freire – Poder, Desejo e Memórias de Libertação, Porto Alegre, Artmed, 1988. A mesma entrevista foi reproduzida em Freire, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis, Rio de Janeiro, Ed Paz e Terra, 2014.