Um dia desses, encontrei Bernardo numa Feira de Artes montada ao ar livre na praça central da cidade. Usava óculos de sol e vestia uma camiseta do seu time, tecido e confecção de primeira linha, que alegava ter sido presente de um amigo. A camiseta já não se adaptava ao seu corpo, um pouco acima do peso. O cabelo despenteado praticamente escondia o par de brincos. Bernardo mantinha o hábito de brincar com a barba e o bigode enquanto falava – o cacoete já havia se transformado em piada no seu meio. Naquele dia, Bernardo estava acompanhado por Franco, outro amigo que eu também não via há tempo e falava muito, sobre qualquer coisa. Principalmente sobre qualquer coisa.
Sem se dar conta do tamanho modesto da conta bancária e das dívidas pendentes, Bernardo havia acabado de comprar um coelho feito manualmente com madeira de lei e resina, finíssimo acabamento. O objeto ficaria sobre um velho baú, ao lado de peças como um abajur e um candelabro, na pequena sala do pequeno apartamento onde vivia com a esposa. Era este o seu cômodo preferido. Ali, Bernardo assistia a partidas de futebol e se envolvia com detalhes como se tratasse de questões pessoais, talvez a defesa de uma filha pré-adolescente. Recém-casada, Marilena até se esforçava para manter a mesma sintonia, mas em geral acertava apenas na trave. Futebol não era sua praia.
Já havia se passado cinco minutos quando nossa conversa encontrou o seu rumo inevitável: o trabalho e a busca por uma colocação profissional. Bernardo era um Químico que conviveu com as melhores avaliações durante o curso superior. Mas estava desempregado há mais de um ano, período em que contou com o auxílio-desemprego.
Falávamos sobre a necessidade urgente de trabalhar, quando Franco se manifestou com a costumeira segurança.
– Comigo não tem disso, eu pego qualquer coisa! – afirmou, categórico, mirando Bernardo, a bola da vez.
– Pega “qualquer coisa”?! – perguntei, para ver até onde sua certeza conseguiria resistir.
Até onde sei, toda empresa, quanto precisa contratar alguém, obedece a alguns critérios básicos para incluir uma pessoa no seu rol de funcionários. Um deles, verificar se e até que ponto o futuro profissional está apto a exercer sua função. Acontece que ninguém dispõe de todos os conhecimentos, habilidades, aptidões, certificações etc. necessários para todas as funções. Logo, a afirmação de Franco não tinha a consistência para se sustentar. Bernardo poderá “pegar qualquer coisa” desde que essa “coisa” esteja acessível naquele momento e ele disponha das competências necessárias para o exercício do cargo. Além disso, talvez Franco tenha se esquecido de um detalhe que faz toda a diferença, porque é decisivo: quem decide se ele “pega” ou “não pega” é o empregador, não ele.
Sem se dar conta, vez por outra o Químico desempregado despejava sobre a pessoa mais próxima as suas frustrações. Inclusive a de nunca ter sido contratado por aquela grande empresa internacional que conheceu quando criança, próxima da sua casa, um antigo emprego de seu pai. Naquele dia, Bernardo procurou manter a calma. Procurou.
De ponta a ponta, Franco insistia no quanto acreditava ser capaz de assumir qualquer trabalho, em qualquer empresa. Tinha uma disposição teórica para isso. Sem pensar que se ele quer ele pode, sim, desde que antes se capacite para essa conquista. Franco não havia pensado nisso, quando entrou na conversa defendendo esse seu ponto de vista. Talvez ainda não soubesse que as pessoas têm limites – inclusive ele. E que isso conta.
Quando ouço coisas do gênero sobre o preenchimento de uma vaga, sinto um rápido desejo de ver o candidato, depois da análise do seu currículo, ser conduzido até o aeroporto e desafiado com algo como “Está vendo aquele avião? Seus quase 200 passageiros pretendem viajar e chegar, com segurança, ao Rio de Janeiro. Temos uma vaga para piloto, e se você ‘pega’ qualquer coisa, assuma o comando, o Santos Dumont é seu destino”. Claro que no que diz respeito ao transporte de pessoas, ele era apenas um motorista experimentado. Mas isso não seria suficiente quando se pretende pilotar aviões. Franco não havia pensado nisso também.
A propósito: você, leitor, entraria num avião se soubesse que o piloto não ama a profissão, não sabe pilotar aeronaves e se dispõe a fazer um trajeto sem rumo e com combustível insuficiente para isso? Ou colocaria seu filho nas mãos de um médico, para uma cirurgia, se o doutor não tivesse na Medicina o seu maior propósito e a sua missão, pré-requisitos para que sempre se empenhe em trazer o que há de mais seguro em seu trabalho, garantindo o máximo de conforto ao paciente?
É normal a busca por um espaço dentro da ampla área de competência – vou repetir a expressão: “área de competência”. Ainda que isso exija algum esforço de adaptação por parte do profissional. Mas um excelente motorista acreditando que, por isso, e somente por isso, está preparado para pilotar avião… Até irresponsabilidade têm limites.
Quando se candidatava a uma vaga para a qual não estava preparado, apenas seguindo o critério de “pegar qualquer coisa”, Franco agia como aquele homem que, perguntado sobre o projeto repentino de casamento, respondeu que ia se casar porque não aguentava mais aquela vida de fazer comida, lavar, passar, cuidar da casa etc. De resto, não havia brilho em seus olhos, o nome da futura esposa não lhe dizia nada – ela era apenas uma “qualquer coisa”. Que mulher embarcaria numa vida conjugal sabendo que a principal motivação do futuro marido foi a de se livrar de algumas tarefas tidas como incômodas?
Como no casamento, empresas que buscam relacionamentos sérios querem envolvimento com profissionais apaixonados pelo que fazem. Apaixonados e competentes, isto é, que disponham das competências necessárias. Retomei a conversa.
– Franco, Ernest Hemingway é um escritor americano que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Ele escreveu 30 vezes, isso mesmo, 30 vezes a última página do livro Adeus às armas – eu disse.
– E daí? O que isso tem a ver? – respondeu ele.
– Ora, tem tudo a ver. Imagine se ao escrever ele apenas se sujeitasse a aceitar “qualquer coisa” como resultado. Será que teria atingido a mesma qualidade?
Franco disse que ia pensar no assunto. Arrumou sua melhor narrativa e saiu. Enquanto isso Bernardo seguiria buscando um espaço no mercado de trabalho. Talvez depois retomasse dois grandes projetos para os quais havia estabelecido um prazo de validade: ter o primeiro filho e se mudar para uma pequena cidade do interior.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao