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Provas concretas | Rubens Marchioni

O boné sobre o baú antigo, próximo à janela da sala, havia se transformado em sacramento. Durante décadas ele protegeu a cabeça calva de Ronaldo, sempre que se livrava do boné de piloto da ponte aérea. Não era mais um boné; ele havia tomado proporções capazes de representá-lo sempre que a liturgia da saudade se impunha.

Lá fora, a plantação de camélia que ocupava alguns metros antes da garagem não sabia de nada disso. Apenas deixava seu aroma voar por todos os cantos, à disposição do vento, da chuva, do frio e de alguns insetos indesejados e desnutridos, que incluíam folhas verdes em sua dieta.

Lucrécia estava cansada de agir na promotoria, trabalhando em favor da Justiça em todos os níveis. Agora havia chegado o momento de demonstrar um pouco de carinho à mesa da sala, trocando as flores velhas e murchas por uma boa porção de camélias fresquinhas. Algumas formigas não gostaram da intromissão da filha mais velha do velho piloto, mas Lucrécia repetiu o clichê batido: “Os incomodados que se mudem”.

Pouco depois, ela pegou o carro e aproveitou o fato de cumprir sua rotina de sempre. Depois de comprar o jornal, iria também ao supermercado e compraria duas garrafas de iogurte de morango e graviola, que além do sabor refrescante, também perfumava o leite gelado.

– Lucrécia, minha amiga querida!
– Oi, Tatiana. E aí, tem um horário pra mim no salão? Pra amanhã cedo?
– Pra você sempre tem, meu amor, você sabe.
– Pois é, preciso dar um jeito no cabelo, serviço completo. Meu amigo diria que é funilaria e pintura.
– Sem querer ser desajeitada como ele, mas no seu caso é martelinho de ouro. – Sem a gargalhada espontânea não seria Tatiana, que prosseguiu. – Aquele casamento da sua sobrinha?
– Também.
– Também. Passa no salão e deixa que eu cuido disso. Eu vou ver nas cartas de Tarô se tem alguma coisa pra acontecer com você, pra você é de graça. – E a gargalhada se repetiu, solta. – Tchau, minha amiga, te espero no salão.

“O que é aquela multidão aí na frente?” – Lucrécia se perguntou enquanto tratava de se afastar daí. Não, não porque tivesse qualquer problema com a aglomeração de pessoas, ela até já havia participado de pequenas festas de aniversário. É que tanta gente se movimentando ao mesmo tempo, com suas faixas e cartazes e seus gritos e suas palavras de ordem e seus megafones, isso para ela já era demais. Não vou dizer que “fugiu como o diabo foge da cruz” porque ainda jovem minha avó abandonou a frase por considerá-la anacrônica.

Se Ronaldo não tivesse feito o último voo da sua vida, agora para outra dimensão, ele estaria muito preocupado com a demora de Lucrécia. O velho piloto era muito sensível à demora, talvez por ter convivido com isso durante tantos anos em terra e no ar. Mas às vezes ele exagerava um pouco, há quem diga até que isso é coisa da idade, que o teria transformado num velho impaciente. Deixemos que ele descanse em paz.

Provas concretas | Rubens Marchioni

Lucrécia chegou em casa meio esbaforida, o suor escorrendo pelo rosto e deixando úmida sua roupa, vítima do calor que fazia concorrência com o da Califórnia nos seus dias mais quentes.   

Sem “desconfiômetro”, o celular não escolheu um momento mais impróprio para pedir a atenção de Lucrécia, com agenda cheia, dentro e fora de casa.

– Oi, maninha!
– Oi, Norma. O que foi? Você quase nunca liga! O que aconteceu, alguma coisa com a mãe? Me fala logo, mulher!
– Fica calma, Lucrécia, a mãe está se recuperando. A noite no hospital não foi nada fácil.
– A noite?! No hospital?! Não me diga que…
– É, é quase isso. Era mais de meia noite quando a mãe teve uma nova crise, só que mais forte. Não estava aguentando a dor no estômago.
– Tá, mas você conseguiu dirigir, Norma? Alguém foi com você? O Marcelo estava em casa?
– Não, ele havia dormido na casa da namorada, você sabe. A mãe continua internada, fizeram uma cirurgia às pressas – disse Norma.
– Ai, meu Deus, essa não! Cirurgia numa situação dessas? Tem certeza?
– Parece que o médico tem mais certeza que eu. E eu ainda tenho pavor de sangue, você sabe!
– Vou ver se consigo desmarcar alguns compromissos e em menos de duas horas chego aí.
– Tá bom, menos de duas horas se a estrada não estiver congestionada – disse Norma.

Deu tempo, mas não deu tempo. O que significa dar tempo, afinal, quando se tem por perto um celular que ainda tem muito o que aprender sobre relações humanas?

Lucrécia sentiu saudades do pai, uma saudade antiga, agora renovada. Um dia Ronaldo voou para o céu. Será que ela ficaria órfã de mãe porque dona Idalina estava sentindo falta do marido? Será que o casal marcou um encontro num lugar que nem era o de sempre, mas para sempre, porque lá não existe prazo de validade?

– Oi, maninha, que bom que você chegou. Tá difícil, tá difícil… sozinha aqui tá insuportável. Cuidar de tudo, de toda a burocracia, credo, como é difícil ir embora nesse país! – disse Norma. Seus óculos de sol se jogaram no chão, mais precisamente embaixo do tênis azul de Lucrécia, mas ela poderia comprar outro.
– Como “cuidar de toda a burocracia”?! De que burocracia você está falando”?! – Mais do que nas últimas décadas, agora Norma precisava mais ainda do contato físico, do toque.
– Calma, irmã, calma, eu tô aqui, calma. A mãe…? – disse Norma – Calma… como é que faz pra ficar calma numa hora dessas, me fala, como?
– Como é que foi no hospital? Ela sofreu muito? Foi bem tratada pelos médicos e enfermeiras?
– Não, Lucrécia, não foi bem tratada. Aliás, não sei se dá pra dizer isso, mas acho que foi maltratada, sabe? Horrível, horrível isso tudo. Você é promotora de justiça, né?
– Sim. O que você quer que eu faça?
– O que eu quero? Você sabe o que se faz nessas horas. Eu quero que você entre com uma ação contra o hospital por maus tratos e negligência.
– Tá, mas antes eu preciso levantar algumas informações, dados concretos, provas…
– “Dados concretos!?” Dados concretos? Ferra esse pessoal e pronto!
– Digamos que eu queira “ferrar”, mas a Justiça trabalha com dados concretos, com provas, eu preciso de elementos, de provas materiais.
– “Provas materiais”… sei. “Provas materiais”. Vocês, advogados, vou te contar, viu…
– É, nós advogados não temos plenos poderes, não estamos acima da lei.

Um funcionário do hospital desistiu de procurar pelas filhas da senhora que havia falecido. Ele precisava tratar dos procedimentos de praxe, incluindo serviços funerários etc.

Depois da conversa, numa lanchonete aí perto, se deram conta do motivo por que estavam lá.

Feita a cremação do corpo de Idalina, Lucrécia e Norma retomaram a conversa. Mas era preciso obter provas concretas a fim de acionar o hospital. Era o que tinham para o momento. Fora isso, tudo se resumia a uma conversa que gerava mais calor do que luz.

Em casa, Lucrécia assistiu ao filme Beleza Americana. Imediatamente se questionou se seu desejo de beleza a todo custo, por um custo às vezes muito alto como forma de ser feliz, não estava indo longe demais. Abafou o caso. “Isso é coisa de americano!”, não tem nada a ver comigo. Se depois ficar sabendo detalhes sobre como as coisas andaram entre as irmãs e o hospital, volto pra contar. Até prova em contrário, fim da história.


Rubens Marchioni é escritor e artista plástico. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto, pela Editora Contexto. [email protected].

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