O leitor partidário dos valores democráticos deve estar se perguntando a razão da ambiguidade do nome do livro. Afinal, o título dá a entender que a “sociedade perfeita é marcada pela desigualdade social”. Outros leitores, provavelmente, pensaram na hipótese de a publicação sugerir que a população brasileira, ou ao menos grande parte dela, tem por ideal a desigualdade social. Ambos estão corretos. O modelo da sociedade perfeita como sinônimo de desigualdade se coaduna com o pensamento e experiência do século XVI e não com as práticas progressistas do século XXI. Ao mesmo tempo, como historiador profissional, devo dizer que as nossas mazelas atuais – racismo, miséria, misoginia e homofobia como sociedade – resultam das nossas ações. Somos os responsáveis pelas desigualdades sociais em pleno século XXI.
A historiografia brasileira durante muito tempo acreditou que nossos problemas contemporâneos decorriam do passado colonial e, em especial, da escravidão. A atual desigualdade social resultaria de o Brasil ter surgido para servir aos interesses do capitalismo em formação na Europa da Época Moderna. Consequentemente, nossos problemas sociais eram responsabilidade dos outros: da expansão do chamado capitalismo comercial a partir do século XVI. Para aquela historiografia, portanto, fomos e continuamos sendo vítimas de pais algozes. A profissionalização do ofício de historiador pôs em dúvida tais explicações. A partir de pesquisas em arquivos, descobriu-se que o Brasil do século XVII não era um imenso canavial povoado de zumbis (escravos-coisas e senhores descerebrados, ambos criação do capital mercantil europeu). No século XVII, a América lusa, além de canaviais, experimentava a expansão da agricultura de alimentos e da pecuária. Naquele contexto, ainda tínhamos guerras contra as nações indígenas, aumento das importações de escravos africanos e resistências contra os europeus, mas também negociações entre esses diferentes segmentos socias e a mestiçagem entre eles. Aquela sociedade resultava da ação de homens e mulheres; por isso, são perceptíveis culturas políticas e religiões.
Ao lado dessas conclusões, as investigações mais cuidadosas constataram que os canaviais e outras produções eram financiados pelas irmandades pias, como a Santa Casa de Misericórdia, e os Ofícios da Coroa locais, a exemplo do Juízo de órfãos e Juízo dos Ausentes e Falecidos[1]. Desta forma, o crédito não estava apenas nas mãos dos homens de negócios europeus, mas, também, decorria da piedade católica. De igual modo, tais investigações trouxeram à tona que a procura por escravos africanos não resultou da genialidade capitalista em ampliar o comércio atlântico pré-existente de africanos, mas da exiguidade da mão de obra indígena. Afinal, os primeiros passos da chamada sociedade colonial foram sustentados pelo apresamento de populações indígenas. As novas pesquisas identificaram, ainda, que os negócios dos grandes comerciantes lusos não eram tão fáceis na Terra de Santa Cruz, pois tais negócios, nos portos brasileiros, eram realizados sob os olhares atentos das câmaras municipais, dominadas pelas elites sociais locais.
Diante dessas constatações, as novas gerações de historiadores tiveram que reformular antigos problemas, outrora facilmente respondidas pelo viés do interesse dos capital mercantil. Afinal, se a América lusa não resultava da possível emergência do capitalismo no Velho Mundo, como explicar fenômenos o processo de concentração fundiária, as guerras contra as populações indígenas e a implantação da escravidão africana desde o século XVI entre outras tantas questões?
A possibilidade de repensar o enigma iniciou-se com uma simples constatação: os homens agem conforme interpretam as suas relações sociais e com a natureza. Durante muito tempo, acreditou-se que a chave para a compreensão das sociedades estava na maneira pela qual a produção e reprodução da vida material ocorriam, ou seja, no modo de produção. Em outras palavras, tal formulação, levada ao extremo, resultou na crença da existência de uma produção econômica strito sensu, esquecendo-se que a produção de riquezas ocorria em sociedade. O processo histórico é feito por sujeitos de carne e osso, cujos nervos e músculos são postos em movimento por suas visões de mundo. Para produzir riqueza, os homens e mulheres precisam interpretar e serem convencidos do porquê trabalhar, especialmente quando o fazem para outros sujeitos.
A partir do último pressuposto, a América lusa do século XVI deixava de ser terra de zumbis e passava a ser interpretada como resultado da ação de conquistadores europeus e das populações americanas originárias e dos escravos africanos. Leia-se, o Brasil surge da interação de sujeitos, respectivamente, vindos de uma sociedade cujo ideal era a desigualdade social, de populações cuja identidade, grosso modo, baseava-se na guerra, e de sujeitos provenientes de estratificações sociais construídas pela produção de cativos.
O Antigo Regime europeu baseava-se em hierarquias e desigualdades sociopolíticas explicados por um sistema de interpretação produzido pelo cristianismo (clero romano e intelectuais cristãos), espalhado por sua vasta rede de paróquias e continuamente reiterado pelas visitas diocesanas[2]. Nesse sistema, a humanidade e a natureza eram criações de Deus, a exemplo da geração dos filhos pelos pais. Deus como um pai bondoso, mas também austero, concedia a dádiva da vida a todos. Daí homens e mulheres manterem com Ele uma relação de obediência amorosa e se resignarem à sua vontade. Seja como Deus quiser.
Nessa visão de mundo, transformada em disciplina social, o rei aparecia como cabeça da estratificação social e, portanto, responsável pelo bem comum da população. Entretanto, a Coroa não se confundia com a sociedade. Na tratadística política da época, a sociedade surgia como o corpo humano. A exemplo do estômago e do coração cujos funcionamentos ocorrem sem o cérebro, as famílias, aldeias, cidades e senhorios tinham autonomia e sobreviviam sem o rei. Isso porque aqueles organismos sociais eram comunidades políticas (corporações) com a capacidade de formular as normas do seu dia a dia. Porém, o bom funcionamento do conjunto dos órgãos dependia da coordenação dada pelo cérebro. Nesse ambiente, o rei surgia como “cabeça pensante” capaz de articular as jurisdições das várias corporações, de dirimir os conflitos entre elas. Em contrapartida, o funcionamento dessa organização social implicava uma contínua negociação entre a Coroa e aquelas comunidades políticas.
Algo semelhante ocorria nos senhorios aristocráticos. Neles, o nobre, para governar, devia se entender com a aldeia como comunidade política. Os camponeses compreendiam-se como domésticos da casa senhorial, conquanto fossem protegidos e lhes fosse assegurado o acesso à terra. Assim, aquele mundo hierarquizado era, também, de reciprocidades desiguais, de relações e negociações reguladas por normas formais ou costumeiras.
Os escravos não formavam uma comunidade política. Portanto, não possuíam a prerrogativa do autogoverno. O governo dos escravos pertencia à família. Nesse instante, percebemos, claramente, as contradições e fissuras desse modelo cristão de organização social, pois, na experiência cotidiana, todos reconheciam a capacidade de escolha e ação dos escravos.
Ainda no campo das fissuras e tensões da Europa católica do século XVI, claro está que ao lado da visão de mundo católica coexistiam outras visões: a exemplo das interpretações agrárias e pré-cristãs dos camponeses. Da mesma forma, homens e mulheres, ao usarem da cosmologia cristã para agirem, a modificavam, criando e ampliando suas fendas.
Pois bem, foi com esse modelo de organização social, e suas contradições, que os conquistadores lusos, a Coroa e a Igreja começaram a formar a sociedade nesses trópicos. Portanto, estabeleceram a escravidão e a concentração de terras à custa das populações indígenas. Mais adiante, compraram milhões cativos das sociedades africanas escravistas ou não.
Entretanto, seria ingenuidade pensar que a sociedade nesses trópicos é cópia do Antigo Regime europeu. Antes de mais nada, deve-se lembrar que, ainda em meados do século XVIII, a população aqui estabelecida era incapaz de manter um forte crescimento demográfico positivo. Em outras palavras, a existência física daquela sociedade dependia da contínua entrada de estrangeiros, fossem escravos ou reinóis[3]. A Europa do Setecentos era bem diferente: vivia-se uma situação de alta densidade demográfica, considerando as condições técnicas da época.
Por seu turno, a equação escravidão mais escassez demográfica somada à concentração fundiária reforça a hipótese de estarmos diante de uma sociedade cujo modelo era a hierarquia e a desigualdade social nos moldes do Antigo Regime, pois a escravidão continuamente alimentada pelo comércio de africanos, por si só, garantia a existência de uma população responsável pela produção da riqueza social e, portanto, pelo sustento da elite social. Em tese, ao lado da elite escravista, podiam existir lavradores livres com acesso à terra; acesso possível pela baixa densidade demográfica. Entretanto, não foi isso que ocorreu. A elite social controlava a população escrava e concentrava a terra, ou seja, ela produziu, também, lavradores sem terras. Nos domínios fundiários, escravos e lavradores sem terras estavam sob o mando dos potentados rurais. Assim, no Antigo Regime desses trópicos, a hierarquia social adquiriu maior perfeição se comparada à do Velho Mundo.
As diferenças entre o Antigo Regime europeu e o desses trópicos são mais realçadas ao insistirmos nos caminhos da formação de nossa elite fundiária. Em diversas áreas europeias, a manutenção da aristocracia rural lusa teve na elaboração das praticas de herança um de seus mecanismos fundamentais. Refiro-me ao sistema de transferência de patrimônio entre gerações assentado no único herdeiro. Por esse mecanismo, o filho mais velho herdava os bens materiais e imateriais da família em detrimento dos demais. Tal fenômeno foi decisivo para a concentração de terras em poucas mãos. Nesses trópicos, o sistema de herança majoritário era o igualitário. A herança igualitária contribuiu decisivamente para a formação de uma sociedade rural marcada pela desigualdade na distribuição de terras.
A partir da herança igualitária, as famílias dos capitães da conquista, desde ao menos o século XVII, puderam se transformar em potentados rurais, pois permitiram a esses capitães, mediante do casamento de seus filhos, o estabelecimento de alianças com outros conquistadores, seus vizinhos territorialmente. Por sua vez, essas alianças garantiram a paz entre as famílias da elite nascente e, consequentemente, o maior controle sobre escravos e lavradores sem terras. Nesse instante, cabe lembrar a precariedade dos aparatos repressivos da Coroa e, consequentemente, da importância daqueles capitães na efetivação das estratificações sociais sobre a população.
Talvez a maior demonstração das particularidades do Antigo Regime nos trópicos seja a criação de um novo grupo social a partir de sua dinâmica especialmente ao longo do século XVIII. Refiro-me ao fenômeno massivo da alforria de parte da população escrava e, com isso, a geração dos libertos. Em fins do século XVIII, em diferentes regiões do Brasil, os forros representavam mais de 20% da população. Essa cifra sugere que esse grupo, na época, tinha possibilidade de garantir um crescimento vegetativo independente das manumissões. Estudos demonstraram, ainda, a transformação de parte deles em donos de escravos e o desejo de mandar e de ser obedecido. Com isso, a sociedade perfeita deixava definitivamente de ser um ideal europeu para se tornar um modelo genuinamente brasileiro.
[1] As irmandades católicas recebiam doações da elite social e demais segmentos sociais para o custeio de obras de caridades como o sustento de órfãos, noivas, manutenção de hospitais etc. Uma vez nas mãos da Irmandades, os seus tesoureiros podiam realizar empréstimos no mercado para ampliar os fundos das suas confrarias. Algo semelhante, na prática, ocorria com os Ofícios régios mencionados responsáveis pelo cuidado do patrimônio dos órfãos e dos falecidos. Sobre o assunto ver o capítulo V de A Sociedade Perfeita…
[2] As visitas paroquiais realizadas pelos Bispos ou seus representantes (Visitadores) nas áreas sob sua jurisdição foram instituídas no Concílio de Trento. Através delas os padres – visitadores realizavam uma cuidadosa inspeção nas Paróquias de modo a verificar se a disciplina social católica estava sendo seguida pelos fieis da localidade. As visitas, ocorriam no máximo em de dois em dois anos. Sobre o tema ver capítulo I de A Sociedade Perfeita…
[3] Esse cenário demográfico pode ser visto na freguesia de Sacramento, Sé do Bispado do Rio de Janeiro na década de 1740. Ocasião em que a cidade já despontava como centro nevrálgico da América lusa. Conforme os registros eclesiásticos da freguesia cerca de 48% dos pais registrados nos livros de batismos de livres eram naturais de Portugal, das Ilhas de Açores e da Madeira.
João Fragoso é professor titular de História, por concurso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 2005 e no magistério superior federal desde 1986. Pesquisador 1B CNPq. Entre seus prêmios: Arquivo Nacional de Pesquisa (1º. Lugar – 1991) concedido ao livro Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830 (1998); Comenda da Ordem do Mérito Científico – Presidência da República (2010); Jabuti – Ciências Sociais (1º. Lugar – 2015), com Maria de Fátima Gouvêa, pela coleção O Brasil Colonial (2014).