Resenha do livro: CARLOS, A.F.A.; ALVES, G.A.; PADUA, R.F. Justiça espacial e o direito à cidade. São Paulo: Contexto, 2017.
O último livro da coleção Metageografia tem como eixo a via da difícil coalizão entre a radicalidade do direito à cidade e os horizontes da justiça espacial. A premissa do diálogo entre diferentes vertentes dos estudos urbanos marca a organização do livro que conta com o trabalho de pesquisadores de diversas origens, o que se manifesta tanto nas diferentes nacionalidades dos autores quanto na experiência teórica e de pesquisa que trazem na bagagem. No entanto, a história de aproximação entre duas perspectivas, representadas aqui, cada qual, por grupos distintos, merece especial atenção no desenho das pontes que se construíram entre os campos conceituais do direito à cidade e da justiça espacial.
O primeiro elemento a ser observado nessa coalizão se estrutura em torno do pensamento lefebvriano como um dos pilares da constituição do GESP, o grupo de geografia urbana crítica e radical que organiza a coleção Metageografia. A longa trajetória de formação não deixa escapar esse elemento estrutural do trabalho acadêmico trazido nos três volumes já publicados da coleção.
Os 13 primeiros anos de estudos sobre a obra e o método de Marx e os cinco anos subsequentes sobre o trabalho e o pensamento de Henri Lefebvre, no conhecido e já extinto grupo coordenado por José de Souza Martins na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), parece ter tido papel relevante na consolidação de uma corrente de pensamento na geografia urbana brasileira, contando com a participação de cinco professoras do departamento de Geografia da USP (DG). Após esse período, que durou de 1975 a 1992, tem-se início a fase que será ao mesmo tempo de amadurecimento da experiência anterior e de abertura de novas frentes de investigação teórica e empírica. Isso foi operado na condução de pesquisas, nos cursos de graduação e pós-graduação, nas atividades de orientação e nos grupos de estudos que se multiplicaram no DG nesse momento (sobretudo aqueles alocados no Laboratório de Geografia Urbana – LABUR). O percurso de formação desse ambiente acadêmico e intelectual da Geografia Urbana brasileira está bem documentado no primeiro volume da revista lefebvriana francesa La somme et le reste. Atuante em toda essa trajetória, em 2001, a professora Ana Fani Alessandri Carlos organiza e passa a coordenar o GESP, herdeiro da tradição crítica e do debate de formação de orientação lefebvriana. Dentre os organizadores e autores do livro identificam-se quatro gerações que fazem parte do GESP: a primeira geração da crítica lefebvriana do DG aparece representada no grupo com a professora Ana Fani Alessandri Carlos; a segunda geração vem com Glória Alves e Isabel Pinto Alvarez; Rafael Faleiros de Padua e Fabiana Valdosky Ribeiro fazem parte da terceira geração; a quarta geração desponta com o trabalho de Elisa Favaro Verdi e Denys Silva Nogueira.
Desde 2009, o grupo sediado no Departamento de Geografia da USP vem tentando construir as pontes de um diálogo com a perspectiva da justiça espacial, reavivada naquele momento na França e nos Estados Unidos. Dentre o material de acesso, o livro Seeking Spatial Justice, de Edward Soja, e os primeiros números da revista bilíngue Justice Spatiale-Spatial Justice, editada pelo grupo organizado em torno da Université Paris Ouest Nanterre la Défense, foram os primeiros a serem trabalhados nas reuniões do GESP. O problema, acredito que irresoluto, et pour cause ainda um estímulo ao debate e aos avanços na área, se estruturou em torno das tensões entre as noções de justiça e direito e do próprio potencial crítico trazido no escopo de cada domínio conceitual. O capítulo de Elisa Verdi e Denys Nogueira no livro resenhado aqui, recuperando o espírito e elaborando os elementos desse impulso original, devolve ao leitor uma das formas mais recentes do tratamento que a questão tem recebido e constitui ainda uma tentativa rigorosa de avanço.
Do outro lado do Atlântico, na mesma instituição onde Henri Lefebvre havia lecionado, a intenção de reunir uma ampla gama de pesquisadores e grupos identificados à problemática espacial e ambiental contemporânea encontrou na temática da justiça espacial a sua chave. O encontro entre a coordenadora do GESP e o professor Philippe Gervais-Lambony, pouco antes da participação de Ana Fani no colóquio Justice et Injustice Spatiale, em 2008, parece celebrar o início dessa trajetória de aproximação e debates. Em 2011, no colóquio Henri Lefebvre : une pensée devenue monde?, também em Nanterre (este coordenado por Patrick Cingolani), Fani novamente se encontra com os termos do debate sobre a justiça espacial.[1] Além dos dois eventos na França e dos debates em São Paulo, a participação de cinco membros do GESP no colóquio La ville compétitive, à quel prix?, em 2012, realizado pelo grupo do laboratório UMR-LAVUE nas dependências da Université de Paris Ouest Nanterre la Défense, amplia o intercâmbio entre duas das partes reunidas no livro.[2] Em meio a esses cruzamentos, uma pesquisa sobre o trabalho de grupos vinculados a um tipo de geografia urbana crítica e radical vinha sendo desenvolvida por Cécile Gintrac, sob orientação de Philippe Gervais-Lambony. A tese de doutoramento já defendida na Université de Paris Ouest Nanterre la Défense coloca em foco a atuação do GESP e foi apresentada parcialmente durante o evento.[3] A partir daí, as oportunidades de troca entre os grupos continuaram a aumentar nos cursos de pós-graduação, nos colóquios e na realização de um grande evento organizado pelo GESP nas dependências do DG: o Seminário Internacional Justiça Espacial e o Direito à Cidade, do qual foram extraídos os capítulos que preenchem o livro que é objeto desta resenha.
Curiosamente, a redescoberta do pensamento lefebvriano por parte dos pesquisadores do grupo de Nanterre se deu, depois de algum período no esquecimento, a partir da virada espacial do pensamento crítico e da maior influência dos autores anglófonos, sobretudo dos Estados Unidos, tais como David Harvey, Edward Soja e outros ligados à temática da justiça espacial. Talvez por isso, a compatibilização entre as duas noções em foco tenha sido aparentemente menos problemática para o grupo francês. Tais caminhos sugerem diferenças nas formas de apropriação do trabalho de Henri Lefebvre, que, em todo caso, foi apreendido em seus aspectos e em toda sua potência crítica por ambos.
O compromisso com os fundamentos dessa vertente do pensamento crítico reaparece com clareza no capítulo escrito por Philippe Gervais-Lambony. Após percorrer os meandros do debate em torno da problemática desenhada na passagem da justiça social à justiça espacial, como a via de um aprofundamento na complexidade social, Gervais-Lambony reencontra a pertinência do tema do direito à cidade, o que atesta a legitimidade do pensamento lefebvriano na retomada da “pista da triplicidade do espaço para aplicá-la aos trabalhos de justiça espacial”. Nessa fusão não linear entre os atributos da justiça espacial e da utopia crítica de matriz lefebvriana, articulam-se níveis analíticos a partir dos quais são compostas interações binomiais entre os termos de uma “abordagem distributiva” e aquele do “espaço percebido”, entre a “abordagem pelo reconhecimento” e aquele do “espaço vivido”, desde que, e aqui a importância da luta prática pelo direito à cidade, estejam abertas as possibilidades da “concepção do espaço”.
Assim, além do aporte teórico lefebvriano como uma das pontes, a própria orientação crítica funcionou como mais um vetor de aproximação entre os termos que aparecem aqui também como elementos de identificação de trajetórias de pesquisa e formação. Fabiana Valdoski Ribeiro, na sensível escrita que simultaneamente reata com sua trajetória de pesquisa no campo da resistência social e avança sobre as paragens da consciência, mobiliza com força e precisão o sentido crucial da noção de expropriação. No movimento que vai “das ações de resistência à consciência da expropriação”, é a relação entre os predicados que dá sentido ao capítulo: é, portanto, a expropriação urbana, observada diante dos conteúdos e estratégias renovadas da acumulação contemporânea, que articula os momentos da resistência à consciência.
O capítulo de Jorge Luiz Barbosa também apresenta um movimento que vai da crítica ao possível, um movimento no mesmo sentido daquele apresentado por Fabiana. Jorge, recorrendo a uma concepção positiva ou “afirmativa”, apresenta “a favela como expressão urbana da distinção corpórea-territorial de direitos”, o que constitui o termo de exigência da justiça espacial como caminho em direção ao direito à cidade. Em franco diálogo com as formas da organização social, com os desdobramentos das estratégias econômicas e com as instâncias do Estado, Barbosa fornece as ferramentas para uma inversão da chave analítica. Em que pesem os estereótipos conservadores sobre as favelas, estes foram espaços que, segundo o autor, “se constituíram como expressões legítimas das lutas de homens e mulheres para habitar a cidade” e sua incorporação “jamais se efetivará pelo viés da carência, muito menos orientada sob a anomalia da pacificação”. Por isso, “homens e mulheres que, já há mais de um século, lutam pelo direito de habitar as cidades precisam ter um diferente e radical reconhecimento como sujeitos de direitos”. Desse modo prepara-se o grande salto do capítulo a partir do qual a favela pode ser observada como território de experiências ligadas à reformulação do direito à cidade.
A crítica, contudo, não se volta e não se concebe exclusivamente no campo da construção e do emprego de um repertório conceitual dirigido à denúncia dos processos críticos e da desigualdade que tanto parece se naturalizar nas condições atuais quanto se torna, ela mesma, o álibi para a implementação de políticas de corte neoliberal com interesses vinculados à reprodução de grupos econômicos, como seu resultado e condição simultâneas. A postura crítica que se mostra nos capítulos do livro se volta também sobre o próprio universo dos conceitos utilizados. A reflexão de Núria Benach, nesses termos, coloca em tela a ideologia que atravessa as ciências urbanas dando destaque aos usos da noção de direito à cidade. Benach procura restaurar, assim, a potência crítica do termo num contexto que é simultaneamente afetado pelas profundas transformações levadas a acabo sob o domínio do arranjo neoliberal contemporâneo e pela “domesticação” acadêmico-funcionalista do direito à cidade. De mãos dadas, o avanço do “urbanismo de austeridade”, reconhecido por Peck, e a sublimação conservadora da noção de direito à cidade, operada nos circuitos da burocracia, do politicamente correto, e de alguns neolefebvrianos de Estado (mesmo que na universidade), têm resultado no sequestro de um arsenal conceitual crítico que passa a ser “invocado com extrema facilidade para se referir a qualquer pequena melhora ou concessão do sistema”. De acordo, ainda, com Núria Benach, “o preço por passar de um ‘relativo isolamento’ a um ‘relativo estrelato’ tem sido, é claro, a eliminação das partes mais incômodas e, especialmente, um esquecimento dilacerante do espaço vivido, subsumido ao ‘espaço concebido’ e ao ‘espaço percebido’”. A amplitude da crítica aqui abarca um movimento que vai dos menores indícios da presença da colagem com o Estado ao horizonte hipostasiado da ciência fenomenológica.
Nessa mesma linha, Blanca Ramirez e Carla Filipe Narsciso se voltam criticamente à idealização de corte dualista do espaço público como panaceia ao arranjo social identificado ao neoliberalismo. Segundo o que se pode extrair de seu argumento, a polarização entre o sentido do público buscado nas manifestações tipicamente modernas e os resultados da austeridade contemporânea sobre o espaço urbano é falsa quando procura atribuir ao primeiro algum potencial socializante, por mais recôndito que seja, arriscando fazer apologia do poder e da burocracia estatistas e de outras formas de relacionamento entre o político e o econômico. Desse modo, com a ajuda de Sennett, o capítulo aponta os limites de se considerar “que as possibilidades de existência de um espaço público, que é de todos como um direito e herança da modernidade, sejam empobrecidas no neoliberalismo” ao mesmo tempo em que sinaliza a cilada que se traduz na mobilização contínua e atual das noções derivadas desse ambiente de apologia da modernização aos préstimos de objetivos e estratégias sociais que já não são as mesmas.
Nesse mesmo sentido, a partir da passagem que se opera entre as formas racionalizadas do urbanismo modernista do pós-guerra e os resultados do avanço da financeirização da riqueza sobre os processos de produção do espaço urbano, o capítulo de Isabel Pinto Alvarez reposiciona o papel e a necessidade da utopia, valorizando esse elemento como uma dimensão da análise social crítica, não sem uma reflexão sobre a transformação de sua própria natureza neste universo cambiante. Articulam-se nesse grande quadro das transformações críticas do processo de produção do espaço a produção do valor e a distribuição de ganhos rentistas em favor dos segmentos financeiros. A reflexão nos conduz à necessidade de radicalização da luta por direitos num movimento que transforma sua própria natureza e permite ultrapassar o marco distributivista com a crítica ao Estado, reconsiderando os termos reunidos sob o inventário da crítica social dos anos 1970 e 1980, assim como o fará também Rafael Faleiros de Padua, no capítulo subsequente, a partir do trabalho de Sader. Padua reaviva a questão-chave das filosofias emancipatórias e reencontra o seu lugar no âmbito de condições renovadas, valorizando o cotidiano como dimensão crucial na articulação de um novo projeto social que deverá ser fermentado em meio às lutas urbanas pelo direito à cidade. Abrem-se, assim, as condições de consideração sobre o terceiro elemento implicado na construção dessas pontes entre trajetórias de formação, universos de pesquisa e campos conceituais reunidos no livro: o elemento utópico.
No capítulo de Ana Fani Alessandri Carlos, o horizonte utópico se elabora com referência à prática, mas não se confunde com os termos definidos no campo das políticas públicas. Amparada no trabalho de Henri Lefebvre, a crise da historicidade e a urbanização completa da sociedade constituem as condições da refundação desse horizonte putada no direito à cidade, enquanto os conteúdos do processo crítico se definem espacialmente pelo sentido das lutas sociais e a partir do esgarçamento que a dinâmica da financeirização da produção imobiliária impõe ao próprio conteúdo mercantil assumido pelo espaço: é, assim, simultaneamente e no plano da prática, crítica e crise. Também no plano do exame conceitual, as profundas ligações com o capítulo de Núria Benach permitem avançar, neste segundo capítulo, em direção à utopia. Mas, na trama constituída a partir dos nexos visíveis com os capítulos de Isabel e Rafael, trata-se igualmente de uma utopia crítica que deve se desvincular das armadilhas do pragmatismo estatista e não pode se confundir, por isso, com as suas próprias versões de acomodação ao repertório bem comportado, propagandeado por governos ou acadêmicos, das políticas sociais de nossa época. O livro não poderia se furtar a um debate aberto no campo da utopia uma vez que os termos fundamentais da problemática estampada na capa trazem a dimensão de um projeto que aponta para o futuro.
Finalmente, o capítulo apresentado por Glória da Anunciação Alves, retomando em parte a preocupação em situar mais rigorosamente o lugar de cada um dos termos, então, assume uma posição clara, subordinando a justiça espacial ao campo mais amplo do direito à cidade, o qual, por isso, acaba por capitanear o caráter efetivamente utópico sedimentado em sua dupla dimensão conceitual aqui em questão. Enquanto a justiça espacial, em seu argumento, “é necessária e fundamental para minimizar as desigualdades socioespaciais”, o movimento de transformação radical que é incompatível com a manutenção da sociedade atual caberia à realização do direito à cidade, assumindo, assim, um viés antagônico ao reformismo. Contudo, as relações de dependência entre os termos não se desfazem em seu texto e as formas de articulação entre eles permanecem múltiplas.
As linhas de tensão entre a crítica, a utopia e o campo conceitual do direito à cidade e aqueles da justiça espacial tendem a reaparecer entre os capítulos do livro e, mesmo, no interior dos quais se propuseram a enfrentar essa difícil tarefa que é simultaneamente teórica e da prática. Enquanto alguns vão da justiça espacial ao direito à cidade num movimento que enfatiza a radicalidade do último e pontua o potencial de superação aí contido, outros perfazem uma trajetória que colocam a justiça espacial como dimensão possível e pragmática para a realização do direito à cidade. A dimensão pragmática das diversas formas da justiça espacial, sem perder de vista o horizonte do direito à cidade, é, para alguns, uma possibilidade aberta pelo próprio trabalho de Henri Lefebvre. Esse debate não está fechado. Os caminhos apresentados não são necessariamente excludentes e podem ser, ainda, complementares, mas a equalização e os arranjos entre eles não são simples e nem mesmo fáceis, isso é o que fica claro nesta instigante e ousada iniciativa do grupo que assina a organização do livro.
[1] Uma publicação com o mesmo título carrega a memória do evento com as contribuições de seus participantes.
[2] As publicações que resultaram mais diretamente da participação dos membros do GESP neste evento podem se encontradas no capítulo de Ana Fani A. Carlos em coautoria com Silvana Pintaudi, Business de l’espace urbain et “droit à la ville”: Le cas de l’operation Faria Lima, do livro Metropoles en débat (dé)constructions de la ville compétitive, e no artigo São Paulo et les limites de la production de la ville compétitive, publicado na revista da rede mundial de estudos lefebvrianos La Somme et le Reste e de autoria do grupo que levou um trabalho de reflexão coletiva a partir de suas próprias experiências de pesquisa.
[3] Parte das conclusões do trabalho podem ser encontradas em dois artigos recentes da mesma autora: um com o título La fabrique de la géographie urbaine critique et radicale, publicado no primeiro número de 2017 da revista Echogéo, e outro, Kritische Stadtgeographie: ein Archipel epistemischer Gemeinschaften, na revista alemã Sub\urban: zeitschrift für kritische stadtforschung.
Publicado originalmente em https://confins.revues.org/12108