Brasileiros podem ter preferências e opiniões diferentes a respeito de tudo, da política ao futebol, mas hoje em dia, parece que pelo menos em um ponto nós concordamos: sem uma escola pública que ofereça um ensino universal de qualidade as oportunidades para os jovens continuarão muito diferentes, nossa sociedade permanecerá fraturada gerando insatisfação, violência e insegurança. A afirmação de que o Brasil é uma democracia é e continuará sendo apenas uma frase feita, pirotecnia verbal sem conteúdo. Nosso contrato social, a tão bem intencionada Constituição de 1988, continuará sendo um belo texto, mas uma utopia. O fato é que todos os países que deram um salto qualitativo nos últimos 100 anos contaram com escolas de qualidade acessíveis a toda, ou quase toda a população. Corrigir desigualdades por meio de cotas pode ser uma necessidade momentânea, mas tem a desvantagem de esconder a origem do problema que é a formação deficiente de nossas crianças e jovens.
Depois de muito tempo batendo nessa tecla parece que começamos a ser ouvidos. Trabalhos sérios feitos em pontos isolados do país têm surpreendido os céticos, mas confirmado o que se dizia, por exemplo, Magda Soares: “toda criança tem direito a aprender. Toda criança pode aprender. É papel do Estado fornecer condições para que as crianças aprendam.” A experiência realizada no Ceará demonstrou a mesma coisa. Em um estado nordestino não particularmente rico, os resultados dos alunos têm sido dos melhores do país. Instituições educacionais espalhadas pelo país, geridas com eficiência, vêm obtendo também resultados surpreendentes para aqueles que, erroneamente, pensavam que não tínhamos condições de ter boas escolas disponíveis a toda a população. Temos e podemos.
Por todos esses motivos, creio não ser otimismo em excesso acreditar que a população brasileira chegou à conclusão de que temos que aplicar, no país todo, sistemas escolares verdadeiramente democráticos, disponíveis a estudantes de qualquer origem social, de qualquer identidade racial, de qualquer região do país, de qualquer opção sexual. Se é uma vergonha, como diz um cientista amigo meu, o Brasil nunca ter recebido um único Prêmio Nobel, vergonha maior é manter grande parte de sua população à margem de uma formação que habilitaria os jovens a se apresentarem com honra em avaliações internacionais de matemática e ciências (para não falar de redação incoerente e cheia de erros e do desconhecimento total de processos históricos, civilizatórios).
Falo de escola pública com conhecimento de causa, uma vez que fiz o Primário (5 anos), o Ginásio (4 anos) e o Colegial (3 anos) em escolas públicas. É verdade que contava com uma família que prezava muito a leitura. Meus pais eram imigrantes, não tiveram oportunidade de realizar estudos formais, mas sempre se dedicaram à leitura, tanto em português quanto na língua iídiche. Quando íamos pra cama, minha irmã e eu, tínhamos a oportunidade ouvir seu Abrão e dona Luiza ler para nós contos inteiros, ou trechos de romances. Aprendi a ler muito cedo, pois queria descobrir, eu mesmo, os tesouros inacessíveis para analfabetos que os livros continham. E tive um grande professor de português, João Tortello, que estimulava meu amor pelos livros. Confesso que livros escolares eu destrinchava com pouco esforço, o suficiente para passar de ano, mas lia o que aparecia na minha frente, com fome difícil de saciar. Lembro-me quando o professor de português perguntou, no começo do ano letivo, o que tínhamos lido nas férias de Verão. A maioria dos alunos não havia lido nada. O meu relatório devia parecer pedante: eu perguntava ao professor se ele queria que eu começasse pelos franceses, russos ou americanos, pois nessa fase eu já lia com alguma ordem… Eram dezenas de livros e eu tinha feito notas de leitura de cada um deles.
Se o professor Tortello me estimulava na leitura de obras de ficção, Ruy Nunes, que ensinava Filosofia, me provocava com sua visão filosófica muito religiosa, cristã, tomista. Para poder discutir com ele, eu, que me considerava materialista (como bom adolescente contestador), comecei lendo as obras que ele indicava, o próprio Thomaz de Aquino e seus seguidores, como Jacques Maritain. Para poder questionar o mestre eu robustecer meu arsenal de argumentos lendo, cuidadosamente, os autores que criticavam a visão aristotélico-tomista e mesmo os que tendenciavam no outro extremo, com explicações materialistas, como Bertrand Russell. É verdade que o professor era um pouco dogmático e me punia nas notas por eu não concordar filosoficamente com ele e até contestá-lo. Mas era culto, inteligente, tinha um arsenal de argumentos respeitáveis e me levou a ler coisas que eu nunca teria lido sem tê-lo como professor.
Ensino universal de qualidade! O Brasil precisa e os brasileiros merecem.
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.