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Por que estudar os movimentos juvenis e de Contracultura

Por que a ideia de juventude dos anos 1950 e 1960 ainda é discutida em livros, memórias, filmes e salas de aula, passadas tantas décadas da explosão dos movimentos que lhe deram origem? Por que em pleno século XXI devemos prestar atenção na juventude daquele passado e em seus movimentos culturais?

A resposta a essas perguntas passa pela constatação, praticamente consensual para todos os historiadores, de que entre as décadas de 1950 e 1970 surgiram um novo tipo de jovem e uma nova ideia de juventude que influenciaram comportamentos, movimentos e atitudes posteriores. Aconteceram mudanças na forma de se vestir, de ouvir música, de protestar, de se reunir, de namorar, de produzir arte. O significado de “ser jovem” foi redefinido. Hoje, a imagem do jovem contestador, identificado com uma “tribo”, em busca de uma expressão própria diante do “mundo adulto” parece natural, mas, na verdade, sua origem histórica remonta àquelas décadas do século XX. Conhecer o momento de explosão e afirmação de uma nova ideia de juventude ajuda a compreender comportamentos, angústias, interesses e culturas juvenis da atualidade.

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Além disso, esses movimentos, muitas vezes politicamente radicais (agressivos ou até extremistas) e contrários aos valores vigentes, foram fundamentais para lançar pautas políticas e culturais inovadoras e cada vez mais importantes para políticas públicas ligadas à questão ecológica, aos direitos das mulheres e das minorias raciais, à diversidade de gênero e de orientações sexuais. Vários deles ainda propuseram e inspiraram novos ideais de vida comunitária e alternativa. Naquelas três décadas – com movimentos, lutas e interesses voltados para um novo futuro, a ser construído – a história parece ter se acelerado.

No famoso e cultuado filme De volta para o futuro (Robert Zemeckis, 1985), há uma sequência que ilustra essa “aceleração da história” tendo como protagonista a juventude. No enredo, o personagem Marty McFly volta no tempo, para o ano de 1955. Esse típico jovem estadunidense dos anos 1980 encontra, nos anos 1950, uma juventude bem diferente, incluindo seus futuros pais, que, na época, ainda nem namoravam. A tarefa de McFly é garantir que seus pais comecem a namorar em um baile escolar para que ele e seus irmãos pudessem existir. Ao subir ao palco, McFly interpreta “Johnny B. Goode”, clássico rock ’n’ roll de Chuck Berry, mas que obviamente ninguém ali conhecia, pois seria lançado em disco apenas em 1958, 3 anos depois do momento em que o filme se ambienta. A princípio, o público jovem se empolga com o novo ritmo que então se afirmava na cena musical: na pista, os casais dançam animados, fazendo acrobacias e executando o passo jive, típico do rock ’n’ roll. Entretanto, o jovem vindo do futuro logo se empolga e, na hora do solo, resolve amplificar sua guitarra ao máximo. Animado, McFly passa a imitar a performance de vários guitar heroes que se consagrariam posteriormente: o próprio Chuck Berry e seu “passo do pato”, Pete Townshend e seu movimento típico de braço, o windmill (“moinho de vento”), Hendrix e suas acrobacias posicionando a guitarra atrás da cabeça e tocando de costas, Angus Young e seus rodopios deitado no chão, simulando uma espécie de convulsão. Ao abrir os olhos, McFly volta do seu frenesi e vê o público parado, perplexo com seu comportamento aparentemente tresloucado. Tentando se explicar, ele diz: “Acho que vocês ainda não estão prontos para isso. Mas seus filhos vão adorar”.

Essa frase que encerra a sequência é um bom exemplo de quanto o tempo histórico se acelerou a partir de meados dos anos 1950, momento crucial na história do Ocidente, revolucionando o conceito de juventude, que ganhou novos significados culturais, políticos e comportamentais. Na verdade, alguns sintomas de uma nova representação da juventude, uma nova compreensão do que significa ser jovem, já despontavam no início da década de 1950. Indícios disso podem ser encontrados em filmes que fizeram sucesso como O selvagem (Laszlo Benedek, 1953), sobre motoqueiros rebeldes liderados por Marlon Brando, e Sementes da violência (Richard Brooks, 1955), que retrata alunos insubmissos e malcomportados, e também em livros como O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger (1951) com o jovem existencialista e angustiado Holden Caulfield como narrador-personagem. A rebeldia e o inconformismo diante das convenções sociais desses personagens fictícios sinalizavam para uma tensão entre os valores então dominantes e as expectativas existenciais das novas gerações que cresciam nos Estados Unidos dos anos 1950 em uma sociedade afluente, marcada pelo consumismo, individualismo e puritanismo moralista, governada por um sistema político democrático que, no entanto, ocultava vários problemas sociais, raciais e culturais.

Os nascidos no pós-Guerra – chamados baby boomers – ainda não tinham um lugar próprio na sociedade e na vida cultural. Eram vistos como “futuros adultos”, em fase escolar, sem uma identidade particular. Ainda não havia uma moda específica voltada para eles, tampouco um tipo de música “tipicamente jovem”. Contudo, nos anos 1950, pela primeira vez, o bem-estar material propiciava aos filhos da classe média norte-americana um tempo social intermediário entre a infância e a maturidade, no qual eles só precisavam estudar, pois tinham sua sobrevivência assegurada e não era mais necessário que trabalhassem para colaborar com o orçamento familiar. A combinação de tempo livre, estudo e dinheiro na mão é indissociável de toda indústria cultural que se organizaria em torno da juventude, sobretudo de classe média, a partir de então. Para essa indústria, foi muito importante perceber que o crescimento econômico do pós-Guerra disponibilizou aos jovens, no conjunto, alguns bilhões de dólares para despender com música, moda, carros e passeios com amigos. Estudiosos do assunto apontam que a contestação de valores moralistas e o surgimento de uma nova cultura juvenil tiveram sua “hora zero” em 1956, com a explosão do rock ’n’ roll e o sucesso do cantor Elvis Presley.

Na historiografia, é recorrente a narrativa que começa no rock ’n’ roll, como expressão de uma rebeldia adolescente e, de certo modo, inconsequente, e desemboca em uma contestação mais profunda, consciente e radical nos anos 1960 e 1970, auge histórico do que se convencionou chamar de Contracultura e seus movimentos resultantes de um novo lugar da juventude nos Estados Unidos e no mundo Ocidental.

O termo “Contracultura”, conforme utilizado neste livro, refere-se a um conjunto de atitudes, comportamentos, sociabilidades, produções culturais e movimentos de contestação política criados e vividos pela juventude dos anos 1960 e 1970. Manifestada na Contracultura, a perspectiva crítica se voltou contra os padrões estéticos, comportamentais e políticos vigentes, herdados da tradição, do passado e dos modos de vida impostos pela burguesia e pelas classes médias estadunidenses e europeias entre meados do século XIX e meados do século XX. Foram então contestados e denunciados como opressivos e excludentes padrões normativos que se traduziam em famílias patriarcais, submissão das mulheres, hierarquias etárias, de classe e de “raça” (com o predomínio da chamada “cultura branca”), consumismo e individualismo exacerbado.

A Contracultura serviu de base na luta contra quatro opressões que marcavam as sociedades até meados do século XX: a opressão do corpo e do comportamento desviante; a opressão política sobre sociedades inteiras (imperialismo, neofascismo, conservadorismo); a opressão econômica (desigualdades nos países mais ricos do “Primeiro Mundo” e miséria nos países do chamado “Terceiro Mundo” subdesenvolvido); a opressão cultural caracterizada pelo convencionalismo estético que ditava o que era o “belo” e o “feio” na cultura e nas artes. O combate se expressou em formas de rebeldia individual e coletiva, anticonvencionalismo estético e comportamental, antiautoritarismo e busca da igualdade social. O que antes era considerado parte da esfera “pessoal” e “privada”, ou era naturalizado pelos comportamentos padronizados – o corpo biológico individual, o prazer sexual, as identidades de gênero, a aparência, a linguagem –, passou a ser considerado um tema “político” que deveria ser debatido no espaço público. “O pessoal é político” tornou-se um slogan e uma palavra de ordem.

Podemos dividir a história da Contracultura e da contestação juvenil em fases mais ou menos delimitadas cronologicamente. Entre 1955 e 1962, a fase inicial, formativa, foi marcada especialmente pela rebeldia comportamental. De 1962 até fins dos anos 1970, a Contracultura viveu seu auge, nos Estados Unidos e na Europa, sobretudo, adotando formas de rebeldia, de sociabilidade e expressão cultural mais autoconscientes e radicais. Foi quando jovens formaram comunidades alternativas, assumiram novas formas de vestir e de se comportar em público, criaram expressões artísticas inovadoras, sobretudo na música popular, sempre pautados pela contestação provocativa e consciente aos valores “do passado” e do “mundo adulto”. Entre os anos 1980 e 1990, a Contracultura histórica se disseminou por várias regiões do mundo e por estratos sociais e grupos para além das classes médias brancas dos países centrais do mundo capitalista que lhe deram origem.

Finalmente, no século XXI, podemos falar em “ecos da Contracultura” para descrever a fase de consolidação das lutas por direitos civis e igualdade de gênero, multiculturalismo como política pública e liberdade de manifestar a diversidade sexual, expressas por dezenas de “tribos culturais” que caracterizam a juventude global. É também no século XXI que este legado da Contracultura sofre uma oposição sistemática de setores conservadores, seja no mundo Ocidental, seja em países não Ocidentais, inspirada, sobretudo, por valores religiosos ou culturais que veem na Contracultura uma expressão de degradação das tradições, da família e da moralidade religiosa, considerando-a responsável por vícios, promiscuidade e criminalidade generalizados.

Em termos geográficos, a Contracultura se originou nos Estados Unidos, logo chegou à Europa e à América Latina, para depois se espalhar por todos os continentes. Desde o seu início, os gêneros musicais e movimentos político-culturais identificados com a Contracultura fazem parte da chamada “diáspora africana” nas Américas, decorrente da escravidão generalizada a partir do século XVII que criou sociedades mestiças ou com forte presença negra. Em outras palavras, não podemos falar da história do rock ’n’ roll, por exemplo, sem conhecer a música negra, o rhythm’n blues, que está em sua base rítmica, harmônica e melódica. Não podemos falar em cultura beat, sem entender o jazz. Não podemos falar em contestação jovem, sem passar pela história da luta por direitos civis nos Estados Unidos, que combateu o racismo a partir dos anos 1950. Tampouco podemos restringir a Contracultura à juventude branca de classe média dos Estados Unidos e da Europa. A Contracultura teve muitas faces, cores e etnias.

Este livro apresenta as linhas gerais de uma Contracultura global, plural e contraditória, na qual rebeldia e consumo interagiram para criar um mundo novo, baseado em uma utopia radical de liberdade política e existencial que não esteve livre de desilusões, fracassos e imposturas. Mas que também nos legou muitas conquistas e novas perspectivas para a vida em sociedade.

Os jovens, de ontem e de hoje, são os principais personagens dessa história.



Marcos Napolitano é professor titular de História do Brasil na Universidade de São Paulo (USP). É autor dos livros Como usar o cinema na sala de aula, Como usar a televisão na sala de aula, Cultura brasileira: utopia e massificação, 1964: História do regime militar brasileiro, História do Brasil República e História Contemporânea 2, além de ser coautor de História  na sala de aula, Fontes históricas, Novos temas nas aulas de História e Novos combates pela História (todos pela Contexto).

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