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Por que estudar ficção científica? | Luiz Aloysio Rangel

Até eu ingressar na faculdade de história, em meados dos anos 2000, ficção científica não era, para mim, mais que um passatempo com o qual eu me entretinha vez ou outra. À medida que avancei na graduação, ficou claro que, com método, tudo poderia se tornar objeto passível de crítica. Para o historiador, vestígios arqueológicos, documentos escritos, obras de arte, folclore, tradições e experiências que são transmitidas oralmente são matérias-primas do seu ofício. São pegadas que podem ser rastreadas até as origens dos fenômenos que nos ajudam a compreender o mundo e as intervenções humanas realizadas sobre ele no decorrer do tempo. Para desvendar a historicidade contida nestas pegadas, é necessário entendermos que cada uma possui características próprias, exigindo cuidados específicos durante o seu trato.

Leia um trecho aqui

Dentre as variadas categorias de pegadas, a ficção científica é um tipo que traz consigo particularidades que a tornam uma fonte historiográfica notadamente singular. Basta decompormos a designação que a tipifica para constatarmos que ela possui em si uma contradição quase paradoxal, mas que acaba por torná-la especial pela forma como nos revela as ideias, expectativas, sonhos e angústias que se mostraram relevantes para as pessoas nos diferentes contextos em que esta forma de arte foi produzida. Ficção científica justapõe a palavra “ficção” que, numa interpretação simplória, se refere a algo que não é real, algo que é oriundo da imaginação de alguém, seguida do complemento “científica”, que pressupõe algo concreto, factual e objetivo. E é nesta combinação de ficção e ciência que esse tipo de obra ganha o seu dom de encantar e, sobretudo, inquietar sua audiência. Isso acontece porque esse é um tipo de proposta narrativa que transmite uma noção suficientemente convincente de que aquela ficção imaginada é passível de se concretizar. O componente de cientificismo que ganha protagonismo nestas histórias facilita uma correlação entre a ficção e a realidade objetiva. Os desafios de suas tramas não são solucionados com magia ou forças sobrenaturais, mas sim com o uso de conhecimento e adventos tecnológicos.

Em pouco tempo, o entretenimento e o escapismo proveniente destas obras, fossem livros, filmes, seriados de televisão ou jogos de videogame, se tornariam de tal maneira alicerçados à minha formação, que jamais poderiam ser dissociadas de seu caráter documental. Esta característica especial da ficção científica, que se vale da condição de ficção para ser livre e desapegada das convenções e compromissos acadêmicos, e ainda assim, traz para si a responsabilidade de lastrear a imaginação em conceitos e teorias científicas, resulta em obras com tamanho poder de influência, que o seu público é automaticamente convocado a refletir sobre as mais relevantes questões do seu próprio tempo. O viajante do tempo de H. G. Wells vai para um futuro distante para que o autor consiga colocar uma lupa sobre os diversos dilemas sociais, econômicos e políticos com os quais o seu leitor era acometido em seu tempo presente.

Quando imaginam estas possibilidades, projetadas na forma de utopias, distopias ou anti-utopias, autores como Julio Verne, Isaac Asimov, Margaret Atwood, Willian Gibson e tantos outros não estão fazendo outra coisa senão problematizando aspectos do seu próprio tempo para devolver perguntas que façam seus leitores refletirem sobre questões importantes do seu mundo. Portanto, são obras necessariamente carregadas do espírito do seu tempo, que metaforizam a realidade a partir de um imaginário habilitado pelos paradigmas tecnológicos de cada lugar e cada momento da história. Assim, um passeio pelas diversas fases da ficção científica é um passeio pelos processos históricos que viram a prática científica amadurecer e se consolidar como o recurso fundamental à superação dos mais variados desafios, e viram a sua elevação a condição de recurso fundamental à manutenção da relevância geopolítica de nações inteiras que dela se apropriaram com maior entusiasmo, oportunismo e competência.

Ler ficção científica pode ser algo divertido, educativo e elucidativo. O livro História e Ficção Científica: locomotivas, androides e outras viagens do metaverso é um convite para que o ato de fruição destas obras contemple todas as possíveis experiências que elas possam nos proporcionar.


Luiz Aloysio Rangel é bacharel e mestre em História Social pela PUC-SP, onde se dedicou ao estudo da ficção científica como meio para a compreensão de fenômenos contemporâneos relacionados a cultura, tempo, informação e consumo. Há muitos anos desenvolve projetos de design e tecnologia para grandes empresas e nunca deixou de utilizar a ficção científica como inspiração de seus modelos de pensamento, além de escrever artigos a esse respeito para veículos jornalísticos e acadêmicos.

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