A democracia está em crise, mas ela é resiliente. No início dos anos 2020, quase um terço da população mundial vivia sob regimes autoritários, e a inclinação ao autoritarismo continua presente em diversas partes do planeta.
Estados que pareciam histórias de sucesso promissoras surpreenderam ao se distanciar das liberdades civis e políticas fundamentais. Enquanto isso, as “grandes” democracias estão cada vez mais envolvidas em desafios internos, que passam por profundas crises econômicas, desigualdades crescentes, fragmentação política, problemas ambientais e questões migratórias. Trata-se de um movimento global, que corresponde a um ciclo conservador do capitalismo neoliberal, recentemente agravado pela pandemia da covid-19 e pela guerra na Ucrânia.
Em parte, a crise da democracia resulta da desilusão dos cidadãos comuns com suas promessas e a consequente perda de confiança nas instituições. O aumento das tensões sociais, a falta de transparência na tomada de decisões públicas, a impunidade, a corrupção, a ausência de candidatos políticos viáveis e a desinformação promovida pelas novas mídias digitais fazem com que as pessoas se sintam distantes dos representantes eleitos. Isso tem levado ao declínio da participação popular na política em geral e ao apelo a alternativas mais extremas, o que é aprofundado pela apatia e pela desesperança de novas gerações, com pouca ou nenhuma memória das lutas contra os fascismos e as ditaduras.
Não obstante os desafios existentes, o ideal democrático persiste. O resultado do recente processo eleitoral no Brasil é bom exemplo disso, comprovando que os cidadãos brasileiros querem que suas vozes sejam ouvidas. As demandas por igualdade, dignidade, redução da corrupção e proteção do meio ambiente, entre tantas outras, continuarão enquanto houver democracia. A questão é como transformar a participação pública para que ela funcione mais efetivamente.
Para tanto, é fundamental identificar até que ponto as instituições brasileiras são suficientes para dar conta das assimetrias existentes no país, e até que ponto a liberdade garantida pelo nosso sistema democrático autoriza a interferência de cidadãos comuns em questões públicas de seus interesses. De acordo com Sartori (1987), em uma verdadeira democracia os eleitores não apenas autorizam os governantes a tomar decisões em seu nome por mandatos definidos, mas também devem ter o poder de monitorar, fiscalizar, participar e exigir responsabilidade dos governantes.
O Brasil mudou muito desde o início do processo de redemocratização. A melhoria do nível de escolaridade da população, associada à liberdade de expressão e à revolução nas tecnologias de informação e comunicação, permitiu que mais pessoas tivessem interesse e opiniões informadas sobre as decisões de política pública que as afetam, e passassem a reivindicar participação direta nesses processos ou, pelo menos, justificativas mais bem fundamentadas e transparentes. Amparadas pela Constituição de 1988, que se preocupou em assegurar à sociedade formas inovadoras de interlocução e negociação em defesa de seus interesses, as demandas por maior participação foram se alastrando para diferentes áreas das políticas públicas e do governo.
Mesmo que com relativo atraso, aos poucos essas demandas também chegaram ao domínio das relações internacionais do país. No passado, argumentava-se que a política externa era exercida como um empreendimento racional, livre das pressões da política doméstica e da sociedade civil. Estratégias podiam ser implementadas sem passar por eleitorados ou pressões políticas, e sem a necessidade de serem amplamente justificadas.
O processo de formulação da política externa brasileira tornou-se, contudo, muito mais complexo em anos recentes, devido à aproximação entre as agendas externa e interna do país, à multiplicação de atores com interesses para além das fronteiras nacionais, e à necessidade de acomodar crescente diversidade de interesses políticos, econômicos, sociais e ambientais. Nessa nova realidade, não se pode mais falar em indiferença no que concerne à política externa ou em anuência completa no que tange às decisões tomadas pelas lideranças.
Estratégias, que antes pareciam politicamente viáveis, não estão mais destinadas à aceitação automática, do que decorre um importante conflito entre mentalidades e abordagens tradicionais para a resolução de problemas contemporâneos, além de pressões crescentes por estratégias de longo prazo bem informadas, baseadas na análise técnica dos problemas a serem enfrentados e na contribuição de múltiplos atores sociais.
Em 2003, poucos dias depois de eleito, o presidente Lula declarou que o Brasil estava pronto para “assumir sua grandeza” na ordem internacional, expressando uma ambição de longa data associada à ideologia nacional brasileira. Considerando uma coerente leitura dos desafios emergentes, a equipe de Lula implementou ampla estratégia global, aumentando a capacidade de barganha do país como potência média, para influenciar a seu favor as decisões mais relevantes na arena global.
Em que pesem os significativos avanços verificados, incluindo a gradativa criação de novos espaços participativos, a maioria das decisões de política externa permaneceu restrita a poucos atores, com limitados recursos e limitada prestação de contas à população em geral. Isso contribuiu para a perpetuação de abordagens elitistas aos problemas externos e para a desconstrução da grande estratégia de Lula pelas administrações que se sucederam.
Embora os princípios de soberania, autonomia, não intervenção e desenvolvimento nacional, associados à institucionalidade do Ministério das Relações Exteriores, tenham sido capazes de garantir certa coerência na maior parte das ações internacionais do Brasil no passado, a ausência de discussões sobre desafios estruturais, relacionados à projeção externa do país e à formulação da política externa, nunca impediu que cada nova administração pudesse alterar os rumos da nação com considerável autonomia.
Essa realidade veio a culminar em desvios alarmantes durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro, levando a renovados questionamentos sobre a capacidade de políticos e burocratas tradicionais de orientar a agenda internacional do Brasil a serviço da promoção do desenvolvimento nacional. Não deve surpreender, portanto, que a política externa brasileira tenha entrado na arena global dos anos 2020 à deriva, sem uma grande estratégia, que seja moderna, transparente e mais efetiva para a promoção do desenvolvimento nacional.
Não há dúvidas de que o Brasil tem condições suficientes para assumir um papel central no cenário internacional no século XXI e promover as mudanças necessárias na atual governança global, em prol de seus interesses nacionais e daqueles da sociedade internacional. Por que, então, ainda não atingiu a tão esperada ambição de suas elites de se tornar permanentemente uma potência global?
As respostas a essa questão envolvem múltiplas e complexas variáveis, que vão muito além do governo Bolsonaro, em grande parte associadas às próprias dinâmicas internas do país; à sua estrutura política; ao abismo social; às tradições; aos racismos; à frágil cultura de planejamento; e a um elitismo reativo a mudanças e inovações, que possam impactar os injustificados benefícios de poucos. A isso se somam sucessivos escândalos de corrupção, instabilidades políticas e resultados econômicos inconsistentes. Solucionar essas questões envolverá amplas reformas e mudanças de mentalidade que dependerão de processos geracionais para serem equalizadas.
Outra parte da resposta, mais tangível e passível de ser enfrentada no curto e no médio prazos, reside na ausência de processos eficientes e contemporâneos de formulação de política externa como política pública, que deveriam contribuir para melhor conectar os recursos e as demandas sociais existentes às estratégias implementadas, assegurar maior transparência e prestação de contas e, assim, posicionar mais legitima e sustentavelmente o país na vanguarda dos assuntos globais.
Costuma-se ouvir que o objetivo maior da política externa é promover o desenvolvimento; raramente, porém, ouve-se falar dos processos subjacentes às estratégias para atingir esse maleável objetivo. Embora a governança das políticas públicas tenha evoluído em ritmo acelerado nas últimas décadas, ao incorporar lições do setor privado e das teorias da democracia participativa, a formulação da política externa brasileira manteve-se, em grande parte, atrelada às mesmas estruturas e aos processos que a orientam desde o século passado.
Existem, contudo, elementos-chave que já se mostraram essenciais para a gestão pública eficaz, alguns dos quais também podem ser aplicados ao campo da política externa. De acordo com Edwards et al. (2012), esses elementos incluem forte cultura gerencial; comunicação ágil, proativa e eficiente; liderança entendida de forma contemporânea; mecanismos de responsabilização; sistemas abrangentes de gestão de risco, conformidade e garantia; monitoramento e avaliação de desempenho; e colaboração intersetorial eficaz.
No mesmo sentido, a Comissão Independente de Boa Governança em Serviços Públicos do Reino Unido (OPM; CIPFA, 2004) identificou, por exemplo, que tomar decisões informadas e transparentes; envolver as partes interessadas; e tornar a prestação de contas real seriam elementos essenciais para orientar os gestores públicos no século XXI, inclusive os formuladores de política externa.
Justificando objetivos relevantes, identificando alternativas em associação com múltiplos stakeholders e comparando-as de maneira sistemática para apoiar decisões financeira, moral e legalmente viáveis, os formuladores da política externa brasileira deverão ser capazes de tomar decisões mais sustentáveis, legítimas e eficazes, diminuindo margens de erro e assegurando que amplos conjuntos de interesses da sociedade sejam atendidos.
Quanto antes a política externa for compreendida como política pública, mais cedo o Brasil terá condições de alavancar a relevância das relações exteriores no contexto nacional, desenvolver estratégias sustentáveis que contribuam para atender às suas ambições na arena global e criar valor público adicional para a sociedade.
Pode parecer ingênuo supor que simplesmente mudando os processos e as práticas de política externa poderão se resolver contradições seculares associadas à formulação da agenda internacional do Brasil, bem como reposicionar o país na arena global. No entanto, diante da nova dinâmica das relações internacionais e das inéditas janelas de oportunidades que se abriram com o fim do governo Bolsonaro, a sociedade brasileira não pode mais esperar passivamente por uma mudança geracional para começar a abordar os problemas mais tangíveis e ajustáveis da política externa, em busca de resultados eficazes e transparentes, alinhados com as diretrizes constitucionais, amparados por amplos conjuntos de dados e análises, e conciliando a projeção externa do país com a política interna.
Para evitar que grandes desvios se repitam, o planejamento e a implementação de estratégias de política externa no Brasil devem ser pautados por uma visão de Estado que transcenda os ganhos políticos imediatos, reúna lições da história e dos conflitos internos do país, interesses diversos e traços objetivos comuns da nação, avaliando com realismo os desafios do presente e projetando um futuro mais promissor para a sociedade nacional, sem distinção de classe, sexo, cor ou origem. No contexto de um país democrático, o processo de formulação de política externa não pode prescindir de maior participação da sociedade nacional.
Gustavo Westmann é diplomata e acadêmico. Atualmente, ocupa a posição de assessor diplomático da Secretaria-Geral da Presidência da República. Além de experiências no setor privado, em diferentes áreas do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e na Agência Brasileira de Cooperação, já foi chefe dos Setores Econômico e Comercial das Embaixadas do Brasil na Itália, na Indonésia e na Índia. É organizador do livro Novos olhares sobre a política externa brasileira, também publicado pela Editora Contexto, e diretor dos documentários Brasil, país do presente e Via sacra da Rocinha: arte e resistência na favela. Westmann publicou diversos artigos e já foi palestrante convidado em universidades no Brasil e no exterior. Graduado em Direito e em Relações Internacionais, possui três mestrados, sendo o mais recente pela Universidade de Berkeley, e um doutorado em Política Externa pela JGU, na Índia.