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Os atos da Independência: muitas histórias a contar

Por gerações, afirmamos na escola, nas memórias coletivas e nas comemorações que o 7 de Setembro de 1822 constituiu uma espécie de “evento-síntese” de nossa existência nacional, refletindo tanto nossas potencialidades como povo quanto as mazelas transplantadas do período colonial. É natural que a data, que marca o “nascimento” do Brasil como país independente, seja revestida de usos do passado tão divergentes. Além do que, esses usos podem, eles próprios, constituir objeto de interessantes perguntas históricas.

Os atos da Independência: muitas histórias a contar

Por que o 7 de Setembro ainda mexe tanto conosco? Por que ainda somos tomados por sentimentos de ufanismo e patriotismo, de um lado, e de angústia e incompletude, do outro? Afinal, por que nós, brasileiros, continuamos lembrando do 7 de setembro de 1822 e de modos tão distintos, ainda que transcorridos 200 anos? Em todas essas perguntas, passados, presentes e expectativas de futuro se combinam de maneira explosiva, fazendo do evento algo muito maior que uma simples data largada em nosso calendário cívico e revelando um pouco daquilo que somos (e do que esperamos ser). Ouvir o que tem a dizer historiadores e historiadoras profissionais pode ser uma boa oportunidade para refletir sobre o assunto e, ainda por cima, saber como esse campo científico vem renovando leituras cristalizadas sobre a criação de um Estado e de uma Nação independentes a partir da antiga e heterogênea América portuguesa.

O que os historiadores contemporâneos vêm mostrando é que o intricado processo de “gestação do Brasil” envolveu, dentre outras coisas, a fundação de novas instituições ou a reforma daquelas preexistentes, a definição de quem eram esses novos “brasileiros” e o que isso significava na prática. Estava em jogo, sobretudo, a delimitação dos espaços de cidadania e de quem podia exercê-la. Em uma sociedade escravista e senhorial como era aquela, essas não eram questões de menor importância. Por outro lado, é de se imaginar que uma história dessas não foi vivida ou sentida da mesma forma por todos e em todos os lugares.

A variedade de experiências, agendas políticas e geografias da Independência, de norte a sul da América portuguesa, talvez seja um dos mais surpreendentes achados, segundo contam numerosos estudos de História das últimas décadas. No Pará ou no Piauí, em Pernambuco ou no Rio de Janeiro, no Mato Grosso ou na Bahia, em cada lugar sujeitos históricos variados combinavam suas leituras feitas de um mundo em convulsão com as práticas de poder que já conheciam, (re)fazendo o processo da Independência a seu modo e questionando ou mesmo subvertendo as orientações que vinham dos centros do poder político, no Rio ou em Lisboa.

Como não comunicar tudo isso a um público mais vasto e dizer-lhe, com dados e informações confiáveis, que a Independência foi muito mais que o 7 de Setembro de 1822 ou o grito do Ipiranga? À luz do conhecimento histórico que temos hoje, também é possível afirmar que grupos subalternizados, como povos indígenas e comunidades de origem africana, escravizados ou livres, não foram meros expectadores do processo, “inertes”, “passivos” e politicamente amorfos, como se imaginou inicialmente. O fato de que, à época da Independência e depois dela, tenha havido gente interessada em “apagar” a participação e reduzir as expectativas de futuro desses sujeitos não nos autoriza a fazer o mesmo na hora de escrever a história.

Pelo contrário, estando nosso presente marcado pela diversidade das lutas por direitos e representatividade, pensar a Independência e a construção do Estado e da Nação torna-se “ato em dois tempos”, pois nos permite compreender as peculiaridades, interesses e objetivos dos partícipes daquele complexo momento, ao passo que suas pautas, necessidades, conquistas e derrotas podem iluminar aspectos de quem nós somos e ajudar na tomada de decisões sobre o presente de nosso povo e da nacionalidade que queremos exercer.

Lucien Febvre, historiador francês e fundador da Escola dos Annales, disse certa vez que a História era “filha de seu tempo”, isto é, de cada momento em que é (re)escrita. Seu colega e parceiro intelectual, Marc Bloch, complementou destacando que ela era “uma coisa em movimento”. Várias faces da Independência do Brasil, lançamento da Editora Contexto para este Bicentenário da efeméride, realizando um dedicado esforço de síntese e divulgação científica e seguindo os conselhos de Febvre e Bloch, reuniu um competente time de historiadoras e historiadores para revisitar a Independência do Brasil à luz dos problemas e questões de nosso presente, conferindo mais movimento e dinamismo às histórias narradas.  

Em primeiro lugar, a perspectiva que enseja essa obra reduz o espaço habitualmente dado aos chamados “grandes homens” ou “patriarcas da Independência” – geralmente personalidades masculinas vinculadas à elite política da época. A ideia foi atribuir maior protagonismo aos sujeitos coletivos e, principalmente, às durações mais alargadas, permitindo compreender o ano 1822 dentro de contextos mais amplos de transformação no Atlântico e que remontam pelo menos ao último terço do século XVIII e primeiros anos do século seguinte.

Nesse período, o Império português e suas partes ultrapassaram uma série de reformas internas, sendo ainda abaladas por acontecimentos ocorridos alhures, como as independências das colônias hispânicas e britânicas na América, a Revolução do Haiti (ilha de São Domingos), a Revolução Francesa e a ocupação napoleônica da Península Ibérica. Todo esse cenário produziu uma série de ambições e de temores sobre o que poderia ocorrer também por aqui. Afinal, a América portuguesa era a maior colônia do continente e as ideias e ações reformistas e revolucionárias já circulavam há tempos por essas bandas.  

No mundo dos historiadores, este caminho analítico está assentado e não gera grandes novidades, entretanto, fora da academia ainda prevalece a concepção de que a Independência foi evento isolado e capturado pela vontade de uma dúzia de homens. Por isso, mesmo a agência das elites coloniais é interpretada a partir da variedade de suas posições e da difícil persecução de consensos. Os autores desse livro também consideram os diferentes espaços da Independência para contar as histórias de seus experimentos políticos e sociais, destacando a ocorrência de vários projetos de separação e mesmo de defesa da continuidade dos laços com Portugal. Sem querer dar “spoilers”, ao final ficamos sabendo que “separa-se” não foi uma unanimidade e que, concretizado o “divórcio”, não houve um único percurso a seguir.

Em tudo isso, contesta-se, de resto, que a Independência do Brasil fora evento morno, acanhado e desprovido de conflituosidade e criações. O período foi clivado por tensões raciais e conflitos armados de vária ordem e as populações pobres, indígenas ou de origem africana, buscaram, cada qual do seu jeito e com as armas e ferramentas políticas que dispunham, alargar os espaços de sua participação naquele mundo mutante. O título dessa coletânea não poderia ser mais sugestivo já que, de fato, a Independência teve várias faces e refletiu a própria condição daquele Brasil em gestação – multiétnico, desigual, excludente e contraditório.

Em Várias faces da Independência do Brasil, essas histórias são recuperadas a partir de pesquisas alentadas e revelam detalhes do pacto que buscou reinventar a ordem escravista em um novo país independente. Tudo isso é feito sem renunciar à linguagem clara e didática e, principalmente, ao prazer da leitura. Sintam-se convidadas e convidados a este mergulho em nossa história.

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Autores:

Bruno Leal Pastor de Carvalho – Historiador e professor de História Contemporânea da UnB.

José Inaldo Chaves – Historiador e professor de História do Brasil Colonial da UnB.

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