No inverno de 1970, um professor universitário de história que acabara de concluir seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP) resolveu produzir um livro que, além de servir como fonte para o estudo de obras até então pouco acessíveis em língua portuguesa, pudesse auxiliar seus colegas no ainda incipiente ensino da disciplina de história antiga. O cenário da empreitada foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, no interior de São Paulo, que hoje faz parte da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Lá, uma equipe composta por quatro alunos e três professores começou a trabalhar no livro que rapidamente viria a se tornar referência nas salas de aula não apenas do ensino superior, mas também do nível básico.
Organizado por Jaime Pinsky, hoje professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o livro 100 textos de história antiga completará 50 anos no início de 2022. Desde seu lançamento, em fevereiro de 1972, jamais esteve fora de catálogo, tornando-se um marco no ensino de história antiga no Brasil. “Não posso indicar com exatidão, mas avalio que as vendas estejam na casa dos 100 mil exemplares”, conta Pinsky. O conteúdo disponível em suas 153 páginas permanece praticamente o mesmo. “Além de pequenas correções de grafia, fizemos alterações para adaptá-lo ao novo acordo ortográfico”, completa.
A ideia de compor a obra surgiu das necessidades percebidas na prática docente de Pinsky e das dificuldades relatadas por outros professores, envolvendo a obtenção de documentos históricos que pudessem subsidiar atividades de ensino e pesquisa sobre a Antiguidade. “Trabalhar como professor de história antiga não era fácil nos anos 1960. Embora a matéria fizesse parte do currículo obrigatório do curso de história, havia poucos professores preparados para oferecê-la. De forma improvisada, padres, latinistas, gente da área do direito e apreciadores da cultura clássica e de estudos bíblicos acabavam responsáveis pela disciplina em muitas faculdades”, afirma Pinsky em texto sobre a edição comemorativa lançada este ano. Somava-se a esse contexto a exigência de que os alunos tivessem o domínio de línguas como grego, latim e hebraico. “Esses eram, e continuam sendo, atributos que apenas uma elite de estudantes poderia dispor”, observa. “Tal exigência não correspondia à ideia de ampliação do acesso às universidades brasileiras que, naquele momento, começavam a receber alunos vindos da classe trabalhadora”, conta Pinsky. Quem dominava a língua inglesa ou francesa podia acessar alguns desses escritos, já traduzidos para um dos dois idiomas. Mas boa parte dos textos seguia inacessível.
Encorajado por seu orientador de doutorado, Eurípedes Simões de Paula (1910-1977), que na década de 1930 fez parte da primeira geração de historiadores formados pela Universidade de São Paulo (USP) e em 1961 viria a integrar o grupo de fundadores da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH), Pinsky deu início à tarefa. Depois de tornar pública sua intenção de produzir a obra, discutiu a ideia com outros professores e entrevistou estudantes dos cursos de história e letras da faculdade de Assis.
“Selecionei os alunos levando em consideração os conhecimentos que tinham em línguas clássicas”, conta.
As atividades de tradução e revisão dos textos, que incluíam discussões sobre a grafia de nomes e conceitos, oriundos especialmente do grego, idioma com o qual Pinsky tinha menos familiaridade, começaram em meados de 1970. “Na instituição contávamos com especialistas em linguística, gramática histórica e letras clássicas, além de uma biblioteca excelente”, recorda Pinsky. Por um ano, ele e seu grupo trabalharam na seleção, tradução e revisão dos conteúdos que fariam parte do livro, reunindo autores como o filósofo Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C.), os historiadores Plutarco (c.46 d.C.-c. 120 d.C.), Heródoto (485 a.C.-425 a.C.), Arriano (c. 92 d.C.-c. 175 d.C.) e Tito Lívio (c. 59 a.C.-17 d.C.) e Júlio César (100 a.C.-44 a.C.), além de excertos da Bíblia, como Êxodo e Gênesis, e trechos do Código de Hamurabi, conjunto de leis criadas pelo sexto rei da Suméria no século XVIII a.C., na Mesopotâmia.
Pinsky também utilizou textos da coletânea Ancient Near Eastern texts relating to the Ancient Testament (Anet), organizada pelo arqueólogo norte-americano James Bennett Pritchard (1909-1997) e publicada em 1950 pela editora da Universidade Princeton, nos Estados Unidos. O conjunto é composto de textos mitológicos, litúrgicos, jurídicos e seculares do Antigo Oriente. “A Anet tornou-se referência ao trazer, em inglês, textos originalmente escritos em línguas mesopotâmicas. Nos documentos extraídos dessa obra, trabalhamos apenas na tradução do inglês para o português”, explica Pinsky, que, ao terminar o trabalho, tinha em mãos a tradução de 97 textos, rigorosamente cotejados com seus pares de projeto. O resultado do esforço foi recebido por Eurípedes Simões de Paula com um novo desafio: “Por que 97?”, indagou. “Consiga mais três bons textos e o livro se chamará 100 textos de história antiga”, aconselhou o historiador, ao mesmo tempo que batizava a obra.
A primeira edição, publicada ainda no sistema de linotipia pela editora Hucitec, já estava pronta e impressa em novembro de 1971, mas teve seu lançamento oficializado apenas no ano seguinte. “Como era final de ano, o editor decidiu colocar a data de 1972 para que não ficasse ‘velho’ em poucos meses”, relembra Pinsky. A obra logo caiu nas graças de professores e alunos e passou a integrar a bibliografia de graduação em história, direito, filosofia e letras. Em 1980, o livro tornou-se parte do catálogo da editora Global em uma coleção intitulada Bases, até chegar, em 1988, à atual editora Contexto, fundada pelo próprio Pinsky, um ano antes, e pela qual alcança sua 11ª edição.
“Um dos atributos essenciais do livro é ter introduzido, de maneira ampla, a noção importantíssima de que a história é feita com documentos e não só de literatura moderna”, avalia o especialista em história antiga e arqueologia Pedro Paulo Abreu Funari, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Além de apresentar os textos a partir de eixos temáticos e não por ordem cronológica, o mais comum até então, a obra também não desvincula a história clássica da história oriental, aproximando percursos das civilizações surgidas na Mesopotâmia, como a dos hebreus e egípcios, das estabelecidas no Ocidente, como a grega e a romana.
Distribuídos em 11 capítulos que abarcam conteúdos como escravismo e justiça social, guerras de conquista, mitos, hinos e culto, sistema e órgãos políticos, agrupamentos humanos e propriedade, dentre outros, os textos são, em sua maioria, excertos de documentos maiores. A ideia é que todos permitam a compreensão de processos históricos não apenas a partir de produções consagradas, como é o caso da legislação de Hamurabi, mas também conjugada a textos menos conhecidos, como a narrativa do historiador Floro (c. 74 d.C.-c. 130 d.C.), autor romano que trata da revolta de escravizados em Espártaco. “O uso, sempre que possível, de fontes diretas, como as que a obra reúne, permite interpretações diferentes daquelas que são feitas a partir da literatura produzida sobre os documentos”, completa Funari.
Na obra é possível, por exemplo, ver o geógrafo e historiador Políbio (c. 203 a.C.-120 a.C.) tratar sobre os diferentes poderes que compunham a República romana e suas respectivas atribuições, ao destacar a importância da Constituição para o sucesso das conquistas romanas em territórios mediterrâneos. “Esse é um documento de importância fundamental para o entendimento da tripartição dos poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, fórmula que séculos depois viria a ser adotada em regimes democráticos mundo afora”, aponta Funari. Outra passagem memorável do livro é aquela em que, ao tratar de justiça social, o profeta Amós (? -745 a.C.) afirma: “Antes corra o juízo como as águas, e a justiça como ribeiro perene”. A metáfora, citada nos anos 1960 pelo pastor batista norte americano Martin Luther King Jr. (1929-1968), está relacionada à luta por direitos civis e é resgatada frequentemente no debate político.
Investigações de processos históricos a partir da análise de documentos da Antiguidade costumam contribuir para a compreensão de acontecimentos posteriores, mesmo que aparentemente não guardem relação entre si. A estratégia de Júlio César, explicitada no clássico Commentarii de bello gallico, baseia-se na ideia de “dividir para conquistar” e derivou de sua experiência militar na dominação da Gália, que na Antiguidade era formada por terras celtas da Europa Ocidental que hoje correspondem à França, algumas partes da Bélgica e da Alemanha, além do norte da Itália. A estratégia seria amplamente utilizada nas guerras de conquista promovidas pelos espanhóis durante a invasão do México, no início do século XVI. A dominação da Índia pelos britânicos iniciada em 1858 constitui outro exemplo. Já em O povo pede um rei: Saul, o profeta Samuel (c. 1056 a.C.-1004 a.C.) adverte o povo de Israel, ainda em formação, a respeito das dificuldades que poderiam advir da busca por um monarca com força suficiente para unificar diferentes grupos ao seu redor. “São temas muito ressonantes hoje em dia porque tratam de populismo, ditaduras e outros conflitos sociais que seguem presentes”, afirma Funari.
A história antiga é definida pelo período que vai desde o surgimento da escrita e a formação das primeiras civilizações, por volta de 3200 a.C., até o ano de 476, após a queda do Império Romano no Ocidente. No Brasil, o crescimento mais significativo na formação de professores especializados nesse período pode ser observado a partir de 2000. “Antes disso, era muito comum que especialistas em história do Brasil ou história contemporânea assumissem as cadeiras de história antiga, exatamente pela escassez de doutores especialistas no período”, explica Fábio Augusto Morales, professor de história antiga no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A ampliação do acesso às universidades, pressionada pelo processo de federalização das instituições de ensino superior, ainda nos anos 1960, e a multiplicação das faculdades privadas, duas décadas depois, levou ao aumento da contratação de docentes em cursos de história em todo o Brasil, que encontraram na obra organizada por Pinsky uma fonte para aprimorar os conteúdos tratados nas disciplinas. “Uma obra como essa permite que professores e alunos analisem e interpretem fontes primárias, fazendo com que aulas expositivas se transformem em oficinas de história”, avalia Morales, que começou a utilizar o livro em 2001, quando era professor no ensino médio.
Não raro, a leitura de textos sobre violência, escravidão, infanticídio e o papel a ser desempenhado pela mulher na sociedade pode chocar leitores desavisados. “É preciso fazer o exercício de situar cada coisa em seu tempo. O conceito que se tinha da violência no mundo antigo, por exemplo, era bem diferente do que temos hoje”, afirma Erica Cristhyane Morais da Silva, do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que conheceu a obra durante a graduação em história na Ufes, no final dos anos 1990. Silva destaca outro atributo da publicação, além de ter sido organizada e traduzida sob a coordenação de um historiador: o fato de apresentar os documentos sem textos introdutórios, que poderiam direcionar a interpretação do conteúdo. “Esse arranjo confere ao professor autonomia para conduzir os debates em sala de aula a partir da relação entre presente e passado”, finaliza.
Texto publicado originalmente em Relatos da Antiguidade – Revista Pesquisa FAPESP